Poesia,

Um freio para a bestialidade

Em livro de entrevistas, Joseph Brodsky reafirma a poesia como linguagem suprema, um “desvio da forma usual e obediente de pensar”

26nov2018 | Edição #15 set.2018

Um bom livro de entrevistas é insubstituível. Pensando em grandes exemplares do gênero — Truffaut com Hitchcock, Valéry com Degas, Bermejo com Cortázar —, nota-se uma intensidade na elaboração de ideias e pontos de vista, um modo mais solto e acessível de falar de si e de outros.

No caso de A musa em exílio, de Joseph Brodsky, o que se percebe é uma consistência — por vezes até uma obsessão — do poeta russo com relação a certos temas e opiniões. Essa regularidade é acentuada pelo fato de o livro ser composto de conversas com distintos entrevistadores ao longo de anos, ao contrário de outros livros célebres do gênero, nos quais entrevistador e entrevistado se encontram ao longo do tempo (como Osvaldo Ferrari com Jorge Luis Borges). Com organização de Cynthia L. Haven, que também assina a excelente introdução, que dá conta da recepção póstuma de Brodsky, A musa em exílio traz dezessete entrevistas concedidas a publicações estadunidenses e britânicas.

Outro aspecto importante da entrevista com artistas e escritores é a recorrente preocupação com a linguagem, escrita e falada. Brodsky, na condição de poeta, é metódico na escolha de palavras, rimas e formas. Isso é intensificado pelo fato de Brodsky ter trabalhado com dois idiomas em sua carreira, sobretudo a partir de 1972, quando foi expulso da União Soviética e se estabeleceu nos Estados Unidos. Nessa nova etapa, fica mais próximo do idioma inglês, embora a sua convivência com a língua tenha começado bem antes, ao descobrir, ainda na Rússia, os poemas de T. S. Eliot e W. H. Auden. 

Até sua morte abrupta, aos 55 anos, em 1996, de ataque cardíaco, Brodsky seguiu operando nas duas línguas, oscilou de uma a outra, experimentando empréstimos e atravessamentos. Questionado, em uma das entrevistas de A musa em exílio — por Sven Birkerts, em 1979, para a Paris Review — sobre a razão de ter escrito pouca poesia em inglês, Brodsky responde: “tenho coisas suficientes para fazer em russo. Não quero criar uma realidade extra para mim. E, por último e mais importante, eu não aspiro a isso. Estou bastante feliz com o que faço em russo, não consigo pensar em tentar nada em inglês. Não quero ser punido duas vezes. E, quanto ao inglês, escrevo meus ensaios, o que me dá confiança suficiente. Tecnicamente, o inglês é a única coisa interessante que resta na minha vida”.

Dificuldade

É preciso reconhecer nessa frase uma espécie de declaração de princípios: a arte deve ser difícil, deve ser dificultada pelo próprio artista, é preciso desconfiar daquilo que se faz com naturalidade. As entrevistas testemunham o confronto constante com um idioma estrangeiro, uma relação tensa que ele próprio cultivava. Para ele, a arte é aquilo que surge depois que o artista ultrapassa obstáculos, dificuldades colocadas em seu caminho por ele próprio ou pela tradição.

Em entrevista de 1973, Brodsky aponta: “Como disse Robert Frost, escrever em verso livre é como jogar tênis com a rede abaixada”. E em outro momento da mesma entrevista: “Tenho mais tabus, mais vetos do que permissões. Eu me imponho mais vetos ao escrever do que permissões”. É possível notar ainda que, no caso de Brodsky, esse rígido sistema estético combina com a situação do exilado, problemática tanto no aspecto psicológico quanto material. “A poesia é o nível supremo da linguagem”, “uma espécie de desvio da forma usual e obediente de pensar”, diz ele em 1981, e completa: “De maneira inevitável, o homem que diz algo diferente, ele é uma ameaça ao estado totalitário”.  

A valorização que Brodsky promove da leitura e da formação também passa por esse caminho autoimposto de dificuldade. “Apenas a história e a literatura podem frear nossa bestialidade”, diz ele em 1988, um ano depois de receber o Nobel de Literatura e 24 anos depois de ser torturado pelo regime soviético. Somente em 1987, na revista Novyi Mir, será publicado o primeiro poema de Brodsky a aparecer oficialmente na Rússia desde seu exílio. São obstáculos como esses que Brodsky mantém sempre em mente, seja na escrita, seja na leitura. 

Ensaios

Tanto Brodsky quanto os entrevistadores falam com frequência de seus ensaios escritos em inglês, reunidos em duas coletâneas: Menos que um, de 1986 (publicada pela Companhia das Letras em 1994), e On Grief and Reason, de 1995. Para aqueles que conhecem os ensaios de Brodsky, a publicação de A musa em exílio é definitivamente algo a ser celebrado. 

Ler as entrevistas em sequência é uma oportunidade de reencontrar o mesmo Brodsky do ensaio, incisivo, desencantado e, ao mesmo tempo, tão intenso e generoso em suas ideias sobre a escrita, a leitura e a convivência com os clássicos. A valorização do tempo da leitura e da formação — um tempo, por definição, lento e não produtivista — é a lição principal. 

Os grandes artistas do passado são esteticamente potentes porque revelam estratégias sempre novas de romper e absorver os obstáculos, ou desviar deles. “Acho que ninguém tem o direito de tocar o papel antes de ter lido Gilgamesh”, diz ele em 1978; ou ainda: “Ninguém tem o direito de escrever em inglês sem ler as Metamorfoses de Ovídio. O mesmo vale para Homero e para Dante. Antes de chegarmos a Dante, há vários excelentes romanos. Eu destacaria Marcial”. 

Declarações como essas são típicas do estilo oral da entrevista, e no caso de Brodsky são bastante condizentes com a ênfase de seus juízos. É preciso compreender tais declarações, contudo, menos como restrições e mais como estímulos para buscar as referências que, entre outras façanhas, possibilitaram a dicção particular de um artista como Joseph Brodsky. 

Quem escreveu esse texto

Kelvin Falcão Klein

Professor da Unirio, é autor de Cartografias da disputa: entre literatura e filosofia (Editora UFPR).

Matéria publicada na edição impressa #15 set.2018 em setembro de 2018.