Editora 451,

Ódio e gozo

Literatura de Michel Laub evolui ao explorar em romance múltiplos pontos de vista sobre a violência da cultura de nossos dias

01dez2020

Livro a livro, há vinte anos Michel Laub vem construindo uma obra consistente. Seu último romance, Solução de dois Estados, representa uma evolução. Ele não poderia ter sido escrito sem as experiências anteriores, os excelentes Diário da queda e O tribunal da quinta-feira. Este é um livro duro e forte, corajoso na temática e na forma. Os leitores que buscam, num romance, evasão, entretenimento e conforto, devem abster-se, porque este é desconfortável e perturbador. 

O romance tem três personagens principais: dois brasileiros, os irmãos Raquel e Alexandre, e uma alemã, Brenda. Raquel é uma mulher obesa que foi vítima de assédio psicológico na adolescência e mais tarde, como artista, sofreu um espancamento público. Alexandre é dono de uma empresa de academias esportivas intitulada Império, sócio de um pastor evangélico com o qual trabalha em bairros pobres mediante um esquema de pirâmide financeira. Os irmãos se odeiam desde a juventude por questões de herança e por divergências nas relações com a mãe. Brenda está preparando um documentário sobre a violência, tendo como gancho a agressão sofrida por Raquel. Oito anos antes, numa temporada no Brasil, Brenda teve seu marido assassinado por um assaltante. Essas informações sobre eles são fornecidas aos poucos, numa sábia dosagem. 

Mais importante do que o enredo é a forma como as personagens são apresentadas, diretamente por suas falas

Mais importante do que o enredo é a forma como as personagens vão sendo apresentadas. Elas não são construídas por um narrador onisciente, nem por um narrador personificado. Elas nos são mostradas diretamente por suas falas, e o narrador opera como o transcritor de entrevistas para um documentário. Não são entrevistas editadas nem um documentário pronto. Trechos das entrevistas são intercalados em diferentes materiais para um documentário: o material bruto gravado, o material pré-editado, o material extra a inserir. 

Por ser a apresentação direta das falas, esse romance se insere num tipo de literatura que poderíamos chamar de realismo da linguagem. Esse realismo não é, como no realismo literário tradicional, a mimese de fatos, acontecimentos e agentes, mas a captação do real na própria matéria da literatura, que é a linguagem. Contrariando a crença de que a linguagem é capaz de dar conta do referente exterior, o escritor mostra como este se encontra inscrito na própria linguagem. Ao falar, cada personagem revela sua visão pessoal dos acontecimentos, seus sentimentos e a sua ideologia. Na alternância das falas, o escritor cria uma instabilidade inquietante. Na medida em que cada discurso é parcialmente convincente, contendo razões e argumentos para que o leitor o aceite ou o rejeite, a significação do romance permanece numa incômoda indefinição. 

Seria fácil para o leitor classificar as personagens como casos. Alexandre é um caso socioeconômico, motivado pela ruína do pai, causada pelo Plano Collor e resolvida individualmente pelas falhas das políticas públicas subsequentes. Raquel é um caso psíquico de fixação no trauma que ela procura superar pela arte. Brenda é um caso cultural, pelo seu interesse de europeia pela violência em países subdesenvolvidos. Mas as razões e justificativas alegadas estão imbricadas nos discursos dos três. 

Dinheiro

Como nos tempos de Balzac, o dinheiro permeia todas as histórias. Enquanto artista, Raquel é desinteressada, mas aproveitou-se do pouco dinheiro do pai para se formar fora do país, é patrocinada por um banco e está inserida no mercado de arte. Alexandre é movido pelo dinheiro, mas alega beneficiar material e espiritualmente os pobres da periferia, abandonados pelo poder público. Brenda superou o trauma da perda do marido, acredita no trabalho humanitário das ONGs, mas também está inserida no mercado internacional da cultura, fornecendo aos espectadores do Primeiro Mundo, em seus documentários sobre a miséria e a violência, uma boa consciência momentânea.

No embate entre esses três falantes, múltiplas questões atuais afloram. A mais relevante é a que concerne ao ódio que tem se espraiado na sociedade. Raquel assume o sentimento: “O ódio deles que é o meu ódio. Porque eu odeio a mim mesma como odeio o mundo e o mundo me odeia, uma coisa não tem como se separar da outra”. A partir desse tema, surgem indagações sobre corpo, sexo, religião, arte e mercado, vida privada e vida pública. 

O romance de Laub é literatura interrogativa, e vale pela importância de suas perguntas

Nenhuma “solução” é oferecida, e cada leitor pode ter sua leitura da obra. Defensores de causas genéricas e identitárias podem simpatizar com Raquel e sua luta agressiva. Moderados podem concordar com Brenda, que considera o ódio uma questão pública e diz: “Se uma pessoa assistir aos documentários e perceber alguma coisa que pode ser mudada, uma lei sobre crime, uma decisão do governo sobre violência urbana, um costume, qualquer coisa para mim já está bom”. Quanto a simpatizar com Alexandre, o leitor esclarecido terá dificuldade, mas a classe média sofrida e desamparada pelo Estado pode compreendê-lo e até apoiá-lo. A entrevista se passa em 2018, e a eleição presidencial daquele ano o comprovou. Um artigo inserido informa que Alexandre foi posteriormente eleito deputado. Embora o romance possa ser considerado um retrato do Brasil atual, muitos países estão atualmente divididos pelo ódio, como indica o título do livro.

A questão da violência na arte é particularmente espinhosa. Num tempo em que o valor e a função da arte se encontram indefinidos, afirmações como “a arte salvará o mundo” ou “a arte tem de elevar a condição humana” (esta última usada de modo oportunista pelo banco financiador), parecem contrariadas pelas práticas artísticas. Na arte contemporânea, muitas performances como a de Raquel têm o objetivo de chocar o espectador pela exposição direta da sexualidade e da violência. A fronteira entre arte e pornografia é então diluída, e as dúvidas se multiplicam. Tomando-se como premissas geralmente aceitas, de que a arte é libertária, esclarecedora e civilizatória, o mesmo pode ser dito da pornografia? 

No romance em questão, a reação à performance violenta é o gozo perverso do receptor, como os comentários na internet comprovam e a própria Raquel reconhece: “Quem clica nos filmes quer ver uma gorda nua apanhando. Isso é o que faz esse público ver os filmes até o fim, ou até o momento em que a gorda nua apanhando dá a eles o alívio que eles procuram. O gozo com o ódio, com alguém que instrumentaliza o ódio deles”. Ela recusa a arte como “metáfora poética” e quer mostrar que pornográficos são os políticos, os milicianos, os bancos, o mercado, o sistema. Mas sua performance não é ela também uma metáfora, já que, no vídeo, os algozes ostentam o logotipo do Império?

Não se espere do romance uma resposta. Roland Barthes distinguia dois tipos de literatura: uma literatura assertiva, que aceita os valores conservadores da sociedade ou, pelo contrário, que os denuncia com base em valores opostos, e uma literatura interrogativa. Nesse tipo de literatura, “o escritor pode, ao mesmo tempo, engajar profundamente sua obra no mundo, mas suspender esse engajamento precisamente ali onde as doutrinas, os partidos, os grupos e as culturas lhe sopram uma resposta. A interrogação da literatura é então, num único e mesmo movimento, ínfima (com relação às necessidades do mundo) e essencial (já que é essa interrogação que a constitui). Essa interrogação não é: qual o sentido do mundo? nem mesmo, talvez: o mundo tem um sentido? mas somente: eis o mundo, existe sentido nele?”. 

O romance de Laub é literatura interrogativa, e vale pela importância de suas perguntas. E é também literatura interpelativa, pois solicita não uma resposta assertiva do leitor, mas sua reflexão sobre questões fundamentais. Michel Laub dá o que pensar, e isso não é pouco.

Quem escreveu esse texto

Leyla Perrone-Moisés

É autora de Mutações da literatura no século 21 (Companhia das Letras).