Literatura,
Artesão de oscilações
Best-seller em cinquenta línguas, Haruki Murakami transita entre o real e o fantástico alimentando as incertezas do leitor
12jan2020 | Edição #30 jan/fev.20Haruki Murakami é o mais perfeito representante daquilo que tem sido chamado de “literatura mundial”. É um escritor japonês cujos romances incluem um grande número de referências ocidentais: literárias, plásticas, cinematográficas e sobretudo musicais (tanto eruditas quanto de jazz e pop). É best-seller nas cinquenta línguas em que já foi traduzido. Por oferecer um tipo de literatura muito atual, afinada com a mundialização da informação e dos indivíduos, ele merece atenção.
Murakami já publicou dezenas de romances, muito variados quanto ao estilo, ora realista, ora fantástico. Mesmo assim, podem-se notar algumas constantes em suas tramas. Elas mostram geralmente uma personagem parada na rotina que, ao experimentar uma crise, parte em uma jornada de autoconhecimento e transformação.
Esse esquema é tradicional no romance moderno ocidental, desde o “romance de formação”, gênero ao qual pertencem alguns de seus livros. A originalidade dessa forma em Murakami é que nem sempre essa transformação é positiva e, às vezes, ela é suspensa em finais surpreendentes ou mesmo decepcionantes. O assassinato do comendador não foge a essa regra: um pintor de retratos convencionais é abandonado pela mulher, parte em uma jornada solitária pelas estradas japonesas, instala-se finalmente em uma casa que pertenceu a um famoso pintor agora velho e recolhido em uma clínica de repouso. Nessa casa, faz descobertas intrigantes e vive experiências aparentemente sobrenaturais que o transformam.
Neste romance, as referências literárias ocidentais não são apenas ocasionais, mas determinantes para a história. O vizinho Menshiki, milionário misterioso que mora sozinho no outro lado do vale, em uma mansão observada pelo narrador, é inspirado em O grande Gatsby, que Murakami traduziu para o japonês. Em uma entrevista, essa semelhança foi admitida por ele como intencional. Além dessa, há similitudes entre a história da irmãzinha morta que assombra o narrador com personagens de outro grande romance traduzido por ele: O apanhador no campo de centeio. Nesse caso, Murakami efetua, na personagem Komichi, uma fusão da irmã companheira com o irmãozinho morto do herói de Salinger.
Sobrenatural
A que gênero pertence este romance? Realista? Em parte, sim. A localização geográfica de suas aventuras é verídica, e são realistas suas minuciosas descrições de paisagens, roupas, refeições e ações cotidianas. É um romance fantástico? Em seu conhecido ensaio sobre o fantástico, Tzvetan Todorov o distingue do sobrenatural pela hesitação da personagem que, conhecendo as leis naturais, depara com acontecimentos que as contrariam. No romance fantástico, temos quase sempre um narrador na primeira pessoa, com o qual o leitor se identifica. O narrador protagonista deste romance corresponde a esses critérios. Ele hesita constantemente entre o imaginário e o real: “Tudo parecia ser apenas um breve sonho, mas eu sabia muito bem que não estava sonhando”; “Era cada vez mais difícil distinguir a realidade da ficção e a ficção da realidade”.
O narrador não é esotérico, procura sempre explicações racionais para os eventos extraordinários. Qualifica as aparições de “ideias” ou “metáforas”. Entretanto, não acredita muito na realidade empírica e valoriza a realidade da ficção: “Alice realmente existe. A Lebre de Março também, a morsa também, o Gato de Cheshire,
todos eles são reais, de verdade”. Também não é um partidário da “verdade”: “A verdade às vezes só traz uma profunda solidão”.
Mais Lidas
Murakami é muito habilidoso na manutenção da incerteza. Ele associa constantemente o leitor às dúvidas do narrador, quer por técnicas narrativas de prolepse (antecipação) e de suspense, quer pelo uso estilístico da interrogação, muito frequente no texto. Quando o leitor está ansioso por respostas às suas próprias dúvidas, Murakami suspende a narração por várias páginas, para fazer um flashback antes de prosseguir com o relato. São velhas técnicas do folhetim, que continuam sendo muito eficazes tanto na narrativa escrita quanto nas séries televisivas.
O quadro do pintor Tomohiko Amada, descoberto pelo narrador, é uma alegoria de seus problemas pessoais e nacionais. Trata-se de uma representação da cena inicial da ópera Don Giovanni, de Mozart, na qual o famoso conquistador mata o Comendador. Essa cena é pintada no estilo japonês nihonga, que o velho pintor retomara após uma temporada em Viena, onde vivera e se ocidentalizara. O quadro estava escondido no sótão e é o fulcro de todos os desenvolvimentos do enredo. O Comendador se materializa como um homenzinho de sessenta centímetros, com trajes e falas de estilo arcaico, que interpela o narrador e participa, como na história de Don Juan Tenorio, de um banquete. Solene e cômico, o minicomendador é como uma figura de desenho animado inserida num filme realista.
Diferentemente dos romances anteriores de Murakami, em que as referências eram na maioria musicais, neste ele agrega a arte da pintura, o que resulta em algumas das melhores páginas do livro. As paisagens montanhosas descritas por ele se assemelham às das obras nihonga: vales profundos, névoas, revoadas de corvos. Com notável precisão, o narrador descreve a evolução de seus próprios quadros, da tela em branco até a conclusão ou abandono. E reflete também sobre as diferenças entre a arte do pintor e a do escritor.
Crítica
Outro aspecto relevante dos romances de Murakami é a inclusão de problemas sociais e políticos reais em tramas fantásticas. Na trilogia 1Q84, a super-heroína se dedica ao assassinato de homens que maltratam as mulheres na sociedade patriarcal japonesa. A história incorpora também a crítica de uma seita sequestradora de crianças. Em O assassinato do comendador, a vida do velho pintor em Viena decorre no início do nazismo, quando ele teve uma ligação amorosa com uma resistente. A História interfere na história, pois a volta do pintor ao Japão se deve à aliança nipo-germânica. A última página do volume 1 é a transcrição do depoimento de um pintor polonês que fora prisioneiro num campo de concentração, onde ele retratava os soldados alemães. Diz o pintor: “O que eu gostaria mesmo era de pintar em preto e branco as crianças empilhadas no ‘pavilhão de quarentena’. Gostaria de fazer os retratos de todas as pessoas que eles massacraram e obrigá-los a levá-los para casa e pendurá-los nas paredes. Desgraçados de merda!”. Os crimes cometidos por militares japoneses na guerra com a China também são evocados no romance.
Sem se acomodar no lugar do bem-sucedido autor de best-sellers, Murakami não teme as polêmicas. Seu cosmopolitismo e suas críticas ao Japão suscitam a animosidade de seus conterrâneos nacionalistas. As cenas de sexo em O assassinato do comendador provocaram a censura do romance na China. Entretanto, essas cenas não são obscenas, nem mesmo eróticas. Murakami as descreve com a mesma objetividade com que descreve a confecção de uma salada.
Como bom romance que é, O assassinato do comendador não se presta a uma interpretação única e definitiva. No entanto, a mais tentadora é a da leitura psicanalítica das aventuras de seu herói, encorajada nas próprias considerações do narrador, sobretudo no volume 2, no qual faz uma viagem aos subterrâneos da mente. A questão da identidade permeia todo o romance. O herói é um homem sem nome que pinta retratos. Um “homem sem rosto” é referido desde as primeiras páginas. O quadro que dá nome ao livro revela uma oscilação entre duas identidades culturais. O tema recorrente do buraco (fosso, caverna, cripta) sugere o lugar dos problemas recalcados no inconsciente. O Comendador, por sua vez, é uma figura do superego punidor, na história de Don Juan. E o “Homem do Subaru branco”, que persegue o narrador porque “sabe o que ele fez”, parece ser outro fantasma do superego.
Com toda essa complexidade, Haruki Murakami é um autor popular ou um autor erudito? Seus romances narram histórias intrigantes em estilo hábil e claro; ao mesmo tempo, são muito complicados para serem mero entretenimento. Afinal, a resposta a essa pergunta interessa pouco a seus fiéis leitores.
Matéria publicada na edição impressa #30 jan/fev.20 em janeiro de 2020.
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