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Primeiro livro de ficção de Ta-Nehisi Coates navega entre memória e futuro apresentando a escravidão sob a perspectiva dos escravizados

01nov2020 | Edição #39 nov.2020

O primeiro romance de ficção de Ta-Nehisi Coates conta, em primeira pessoa, a história de Hiram Walker, jovem negro escravizado em uma plantação de tabaco na Virgínia (EUA), no século 19. Sua mãe foi vendida quando ele tinha nove anos e seu pai, branco, é o dono da plantação. Por meio de sua voz potente e delicada, somos colocados numa posição a partir da qual a memória da escravidão não é um argumento abstrato, mas uma vivência, emaranhada de personagens que habitam esse mundo brutal — sejam os Tarefeiros, que trabalhavam nos campos, sejam os da Qualidade, que viviam na casa do senhor dos escravos. Coates os apresenta com nome e dignidade. Destaca-se a dose de realismo fantástico do livro (Hiram possui poderes que dão um tom mágico ao romance), que não é fantasioso, mas sim do fantástico. Coates emprega imagens como a do título para navegar entre a crueldade da escravidão e as possibilidades de emancipação. 

O romance lembra Colson Whitehead e seu The Underground Railroad, ganhador do Pulitzer de 2017, em que a emancipação da escravidão também assume contornos de realismo fantástico quando vias subterrâneas por onde escravizados podem fugir ganham vida. Em Coates, a fuga se dá pelo que o autor chama de “condução”: a habilidade de se transportar via contato com a água. Daí o título do livro, que no original se lê “dançarino da água”. Das histórias coletivas faz-se a poesia, e ambos os livros pintam histórias de emancipação com as tintas de mitos — sejam os trilhos secretos para a liberdade, seja a história de que escravizados se jogavam no mar no caminho para as Américas e eram magicamente transportados para sua origem no continente africano. 

O verdadeiro poder de Hiram, no entanto, é a memória. A própria capacidade de condução é, em parte, reencenação da memória da mãe sendo levada quando ele era menino, e que é contada de forma magistral no início do livro, com referência à ponte sobre o rio Goose: “Conhecendo agora o incrível poder da memória, capaz de abrir uma porta azul de um mundo para o outro, capaz de nos transportar de montanhas para vales, de florestas verdes para campos cobertos de neve […], agora sei que essa história, essa Condução, tinha que começar ali naquela ponte fantástica entre a terra dos vivos e a terra dos perdidos”. Coates entrelaça memória individual e coletiva porque são dimensões inseparáveis para quem vive as histórias pouco contadas. A escravidão passa de história abstrata a teia de memórias. Lembrá-las, como faz Hiram, dá-lhe (dá-nos) força. A memória, aliás, ocupa papel central no trabalho do Coates ensaísta. Em 2014, ele escreveu na revista The Atlantic uma defesa de reparações por mais de um século de escravidão e décadas de segregação nos eua. Tal como Hiram, Coates coloca a memória de histórias individuais e coletivas a serviço da emancipação.

Perspectiva

Na obra de Coates, negros não compõem o cenário em tramas vividas pelos brancos: são protagonistas de suas histórias. Logo na epígrafe de A dança da água ele alerta para a mudança de perspectiva ao citar o abolicionista Frederick Douglass: “Meu papel foi contar a história do escravo. Para a história do senhor não faltam narradores”. Ao fazê-lo, ele também apresenta uma visão perspicaz da branquitude em sua complexidade, desde a rudimentariedade de personagens brancos de classe baixa até a crueldade da “máscara tão fina” do privilégio. Sobre os brancos em sua história, escreve: “Porque nós, no Labirinto, vivíamos entre eles, sabíamos em primeira mão que eles iam à privada como todo mundo, que eram jovens e burros, velhos e frágeis, que seus poderes eram todos uma ficção. Eles não eram nada melhores que nós e, de tantos outros jeitos, eram piores”.

Não se trata de um mero detalhe revestido de artifício narrativo, mas de uma profunda mudança de perspectiva. Coates nada contra a tendência epistemicida de negar a pessoas negras a humanidade e a complexidade narrativa de que todos partilhamos como autores de nossas histórias. Em seu livro anterior, Entre o mundo e eu, escrito em forma de carta a seu filho, ele já traz a ideia de que ver pessoas escravizadas em toda a sua humanidade requer contar as suas histórias individuais e não as tratar como uma massa amorfa: “A escravidão não é uma indefinível massa de carne. É uma mulher escravizada particular e específica, com uma mente tão ativa quanto a sua, com sentimentos tão vastos quanto os seus; uma mulher que prefere o modo como a luz incide num determinado local da floresta, que gosta de pescar no ponto do riacho onde a água redemoinha, que ama a mãe a sua própria e complicada maneira, que acha que a irmã fala alto demais, que tem um primo predileto, uma estação do ano predileta, que se destaca ao criar e fazer vestidos, e que sabe, lá no fundo, que é tão inteligente e capaz quanto qualquer um”. 

Coates nada contra a tendência epistemicida de negar a pessoas negras a complexidade narrativa de que todos partilhamos

É o mesmo olhar empregado na narração astuta de Hiram. Ao transportar o foco do sistema macro de opressão escravagista para ele, Coates não se furta a expor a crueldade da escravidão, mas o faz por meio das relações interpessoais que compõem esse sistema. Trata Hiram não como metáfora, mas pessoa. As personagens que conhecem a lavoura melhor do que seus senhores, as rodas de histórias, os entreolhares de quem trabalha na casa dos senhores, tudo compõe a trama do livro porque compõe a vida de Hiram. Denso, mas não didático, A dança da água tem a vantagem de não soar como um ensaio de Coates, e isso é bom. Os argumentos dão espaço à trama rica em detalhes do romance. Mesmo assim, parece que as obras anteriores de Coates foram escritas com essa mesma história como pano de fundo: uma luta constante por reconhecer a visão de negros sobre sua existência nos eua e as formas de emancipação. 

Não é à toa que Coates alia memória histórica e visão sobre o futuro. Em 2016, ele escreveu a HQ Pantera Negra: uma nação sob nossos pés, uma ode afrofuturista materializada no reino de Wakanda, que alia tecnologia e tradições milenares de luta. Memória e futuro magicamente interlaçados. Não como opostos, mas como parte do mesmo contínuo, vistos a partir das personagens que vivem histórias que tecem nossas memórias, como Hiram Walker. “E eles, sem dúvida, são bons na luta. Mas o que eu tenho visto aqui, o que tenho visto da sua mãe, seus primos, seus tios, não é só a luta. Vejo o futuro. Vejo o motivo pelo qual vocês lutam”, nos ensina Ta-Nehisi Coates em A dança da água

Quem escreveu esse texto

Thiago Amparo

É professor da FGV Direito SP e colunista da Folha de S.Paulo.

 

Matéria publicada na edição impressa #39 nov.2020 em outubro de 2020.