Contra a máquina de aniquilar sonhos

Literatura,

Contra a máquina de aniquilar sonhos

Depois de uma década, Chimamanda Ngozi Adichie retoma o romance e seu projeto literário que tem como centro a emancipação das mulheres

01abr2025 • Atualizado em: 31mar2025 | Edição #92

Autores e autoras — quando memoráveis — são capazes de construir universos ficcionais específicos a partir de suas peculiares percepções de mundo. Uma distopia bem ficcionalizada pode conter maior teor de realismo do que muita obra pretensamente comprometida, a depender de onde quem a escreve se posiciona: se no céu, à espera de uma literatura sem CPF, ou na Terra, com a caneta firmemente conectada à experiência humana no que ela tem de mais íntimo e, portanto, universal. 

Chimamanda Ngozi Adichie é do time daqueles que têm os pés no chão. Ela sabe de onde veio e tem traçado com bastante clareza os caminhos de seu projeto estético, observando valores coletivos e pautas sociais, como a proteção às mulheres. Seu sucesso talvez esteja ligado à técnica da autora, que faz com que até mesmo quem despreza esse tipo de defesa na arte encontre uma outra possibilidade de fruir sua obra. No caso desses leitores, é possível apreciar apenas sua habilidade de narradora e dar de ombros para seus personagens vulneráveis, complexos, fascinantes e, em certa medida, indecifráveis.

Desde sua estreia a autora reitera, livro após livro, o diálogo com os problemas políticos do mundo contemporâneo

Desde sua estreia prodigiosa, em 2003, com Hibisco roxo, a autora reitera, livro após livro, seu desejo de dialogar com os problemas políticos do mundo contemporâneo. Assim ela conduziu também o mergulho histórico na Guerra de Biafra em Meio sol amarelo (2006) e a incursão nos dilemas da experiência afro-diaspórica em Americanah (2013), publicados no Brasil pela Companhia das Letras.

Adichie é, certamente, uma das autoras mais influentes do planeta. Em um mundo onde a literatura precisa lutar contra a perda de relevância pública, seus livros parecem rivalizar com o brilhantismo com que apresenta suas ideias na arena pública. Poucos autores conseguem ainda circular com tanto apelo pelo circuito midiático que envolve a literatura de nossos dias como ela, com suas opiniões firmes e risadas francas. Por isso, o silêncio ficcional de pouco mais de uma década contrastou com o sucesso de suas aparições públicas — a maior sensação literária não publicava um romance desde 2013.

Não é então por acaso o alarde com que seu novo trabalho, Dream Count, chega às livrarias do mundo. Inclusive às brasileiras, na edição da Companhia das Letras com tradução de Julia Romeu: A contagem dos sonhos

Dramas coletivos

A experiência feminina, para Adichie, é multifacetada, como toda experiência humana. Mas há unidades específicas e situações que as mulheres compartilham e que as separam da existência masculina. A contagem dos sonhos é extremamente bem-sucedido quando aponta que uma dessas vivências compartilhadas é a forma como os homens ainda subjugam as mulheres no mercado de trabalho, nas relações amorosas ou por meio da cultura de violência de gênero. A emancipação das mulheres é o tronco do projeto de Adichie. Em um sistema capitalista falido, que não oferece oportunidade de ascensão para todos, as mulheres retratadas no livro parecem condenadas a um lugar estanque de subalternidade ao patriarcado.

Chiamaka é o epicentro do romance. É através dela que as demais personagens se conectam, obtendo da empatia de uma escritora de relatos de viagem a mobilidade que o mundo social parece insistir em negar a elas. Chiamaka é uma africana negra que vive nos Estados Unidos e que escreve, portanto, a partir do olhar de uma experiência afro-diaspórica. 

A narração em primeira pessoa oferece um turno de fala para cada uma das personagens principais, iluminando e ocultando perspectivas sociais que operam como modos que a autora encontra de tornar particulares dramas que são coletivos. Chiamaka, por exemplo, retrata as dificuldades de uma mulher que, possuindo mais beleza, inteligência e renda que os homens, não consegue estabelecer conexões amorosas, ainda que mínimas. Zikora encarna a dificuldade de uma travessia de maternidade solo, em um processo de autoanálise que a faz perceber o tratamento injusto a que submeteu a própria mãe. Já Kadiatou faz o trançado entre o passado e o presente da experiência negra, com o Atlântico negro surgindo como possibilidade de redenção. 

Ritos de pertencimento e de violência (como a mutilação do hímen) são metaforizados de forma engenhosa. Ironicamente, é essa personagem, a mais violentada, a que mais usufrui das benesses do sonho americano. Ela vai substituindo a esperança de ter um casamento que traga estabilidade financeira pela certeza de que o trabalho é a única ferramenta de libertação. Ao investir na educação da filha, Kadiatou dobra a aposta na equação qualificação + disposição para o trabalho = emancipação futura.

Curiosamente, a pandemia do coronavírus, que ganha destaque nas primeiras páginas do romance, vai sumindo ao longo da narrativa. Talvez, como o trauma, ela vá progressivamente ficando menos evidente e cada vez mais recalcada, em um processo de fragmentação de sentido que somente a ficção é capaz de desfazer. 

(Des)conexões

Como nos outros romances de Adichie, a ponte aérea Nigéria-EUA é uma constante. A desconexão dos africanos em solo americano é assinalada na experiência de Omelogor, personagem-contraponto das idealizações de quem imigra. Enquanto Chiamaka assume sua veia cosmopolita, Omelogor tem dificuldades evidentes em aceitar os valores e as ideologias de outras culturas, procurando na experiência do deslocamento apenas a confirmação de suas crenças, em uma espécie de cult of the self. A imigração se torna uma coreografia errante na qual o imigrante procura colonizar o novo país para o qual se mudou — no esforço para não perder suas raízes, acaba por boicotar aquilo que foi a energia inicial para deixar sua terra natal.

O foco de A contagem dos sonhos está evidentemente nas mulheres, mas os homens estão na narrativa como ferramenta de desconexão. As mulheres heterossexuais do romance têm dificuldade em se comunicar com os parceiros, sobretudo porque aquilo que elas pressupõem nas relações parece não coincidir com a realidade. Os silêncios deles são preenchidos pelos sonhos, pelo desejo que elas têm do que eles um dia se tornem. 

Adichie sinaliza a falta de limites para a violência com que homens como Trump e Musk seguem influenciando o mundo

É o caso de Chiamaka com Darnell, que desconta na personagem a frustração de não ter tanto dinheiro e liberdade quanto ela. O professor universitário ridiculariza a origem da fortuna da parceira e o fato de ser uma escritora especializada em viagens. A escolha profissional de Chiamaka é, aliás, um ponto de tensão frequente com o mundo, pois mesmo que ela não precise trabalhar para se sustentar, é constantemente descredibilizada por escolher uma ocupação vinculada à experiência de liberdade masculina.

Valendo-se do caso real de Dominique Strauss-Kahn, Adichie sinaliza a falta de limites para a violência com que homens como Trump, Elon Musk e outros megalíderes seguem influenciando os destinos da humanidade. A analogia evidente, que se pode depreender da narrativa, é de que há um outro tipo de pandemia, na qual as mulheres são expostas aos mais variados níveis de violência e de interrupção de seus sonhos. O mundo da energia masculina, com que sonha o big man Mark Zuckerberg, é um mundo no qual já não sobra energia para a fabulação, para a especulação fértil e para a inteligência. 

Trata-se de um lugar distópico e sem literatura, no qual as máscaras não têm data para serem abolidas. Elas não protegem ninguém, exceto a identidade dos agressores, que possuem sempre a mesma cara, o mesmo gênero e o mesmíssimo propósito.

Quem escreveu esse texto

Fernanda Bastos

É jornalista, tradutora e editora-geral da Figura de Linguagem. Escreveu Selfie-purpurina (Peirópolis).

Matéria publicada na edição impressa #92 em abril de 2025. Com o título “Contra a máquina de aniquilar sonhos”

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