
Laut, Liberdade e Autoritarismo,
Dos crimes e das penas
Livro do antropólogo francês Didier Fassin traz novas perspectivas quanto aos fundamentos da punição nas sociedades modernas
25ago2022 | Edição #61O podcast Crime e Castigo, da Rádio Novelo, buscou refletir sobre as reações de alguns ouvintes de seu excelente antecessor Praia dos Ossos, desgostosos com a injustiça percebida diante da impunidade do assassino de Ângela Diniz — ainda que Doca Street tenha sido condenado e cumprido a pena a ele atribuída pelo Judiciário. Após seis episódios tratando de vítimas, algozes, condenações injustas, modelos alternativos e a falência do sistema prisional, as pesquisadoras e apresentadoras confessam uma certa decepção com a falta de respostas definitivas para a pergunta: o que é justiça, afinal?
O ensaio Punir: uma paixão contemporânea, do antropólogo francês Didier Fassin, pode ajudar a amenizar a frustração. O autor se propõe a contribuir para uma teoria da punição, partindo do reconhecimento de que vivemos um “momento punitivo” —um aumento generalizado e universal da demanda social por mais punição, que se torna em si um problema: “O castigo, que supostamente deveria proteger a sociedade do crime, aparece, porém, cada vez mais como aquilo que a ameaça”.
A obra de Fassin vai além dos esforços teóricos tradicionalmente associados ao campo da sociologia da punição ou às definições jurídicas de crimes e penas. O autor rejeita a definição hartiana de que o castigo deve sempre implicar um sofrimento e pergunta: todo crime demanda, inevitavelmente, o castigo? Examinando exemplos de sociedades tradicionais, apontando as iniquidades na aplicação da lei e refazendo a trajetória histórica da relação ambígua entre dívida e punição, da Antiguidade à Idade Média, o livro descreve a substituição das práticas restaurativas pré-medievais pelo discurso de redenção moral por meio da punição e da penitência e apresenta uma etnografia de alternativas distintas do sofrimento como resposta a atos desviantes.
Em seguida, Fassin se dedica a analisar um importante paradoxo: existe um consenso de que punir é justificável, mas não há consenso sobre as razões para tanto. Mais uma vez, a crítica convencional às teorias de justificação da pena é enriquecida com exemplos etnográficos que, embora triviais para quem vive o cotidiano do sistema de Justiça brasileiro, expõem os limites da aceitação uniforme da punição como resposta ao desvio e mobilizam debates sobre ressentimento, rotina, crueldade e banalidade da violência, que nem sempre recebem a devida atenção das teorias criminológicas.
Exemplos etnográficos mobilizam debates sobre ressentimento, crueldade e banalidade da violência
O livro, então, parte para a chave analítica que encontra mais ressonância nos debates contemporâneos sobre punição no Brasil: a distribuição assimétrica das sanções nos Estados contemporâneos. A crítica à forma como o sistema penal diferencia infrações e infratores não é nova, mas a clareza e a elegância da articulação dos argumentos são um importante diferencial em um campo tão congestionado. Vale mencionar, aqui, a excelente tradução da obra para o português, por André Bezamat.
Racionalidade penal
O segundo episódio de Crime e Castigo, “Mosca na garrafa”, retrata a dificuldade de concebermos um sistema de Justiça diferente do que o criminólogo brasileiro Álvaro Pires define como racionalidade penal moderna. Tal como uma mosca que não consegue enxergar o recipiente que a mantém presa, não conseguimos escapar da ideia de que sempre um sofrimento deve ser imposto a quem viola uma regra. O livro de Fassin apresenta um esforço notável de pesquisa empírica, sem descuidar de uma base teórica sofisticada e diversificada, para ampliar os horizontes do leitor. Trata-se de uma excelente contribuição para especialistas e interessados no tema em sua busca de ferramentas para quebrar a garrafa.
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Matéria publicada na edição impressa #61 em setembro de 2022.
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