Laut, Liberdade e Autoritarismo,

A tortura em questão

Livro-denúncia de jornalista descreve as torturas infligidas por militares franceses na Argélia

04maio2020

“À medida que os dias passavam, crescia em mim a esperança de que a opinião pública, posta em estado de alerta, seria capaz de me arrancar das garras dos meus torturadores; ao mesmo tempo, tinha certeza de que eles prefeririam o escândalo da minha morte ao das revelações que eu, vivo, não deixaria de fazer. Deviam mesmo ter pesado tudo isso, pois um paraquedista me dissera ironicamente, quando eu ainda não conseguia me levantar: ‘Que pena, você poderia contar tanta coisa, daria um livro grosso!”.

Foi o que relatou em A tortura o francês Henri Alleg, diretor do jornal Alger Républicain, ao ser torturado por um mês no “centro de triagem” de El-Biar, na periferia da capital Argel, em junho de 1957, em meio à guerra de independência da Argélia (1954-1962), um dos episódios mais traumáticos da história francesa e do colonialismo europeu (a França invadira o país em 1830 e, desde então, tornara-o uma de suas principais colônias). O livro, na verdade, não é nada longo. Com uma prosa cirúrgica, Alleg descreve em menos de oitenta páginas as sessões de tortura pelas quais passou nas mãos de militares paraquedistas antes de ser levado para o “centro de alojamento” de Lodi, onde foi sentenciado a dez anos de prisão. Em 1960, fugiu para a Tchecoslováquia, onde ficou em segredo até os acordos de Évian de 1962, que colocaram um fim à guerra.

Foi na Argélia que Alleg, aos dezoito anos, se envolveu com o Partido Comunista Argelino. Entre 1950 e 1955 trabalhou para o Alger Républicain, que defendia a causa nacionalista. Por seu caráter comunista e anticolonialista, o jornal foi banido em 1955 pelas autoridades francesas. Jornalistas foram presos, e Alleg entrou para a clandestinidade em 1956. Foi capturado em 12 de junho de 1957 na casa de seu amigo Maurice Audin, professor de matemática dado como “desaparecido” (os eufemismos são uma constante na linguagem dos militares) na prisão.

Choques elétricos nos dedos, nas orelhas e nas genitais. Afogamento. Espancamentos. “Soro da verdade”. Fome. Sede. Confinamento. Ameaças a sua mulher e a seus filhos. Os gritos dos demais prisioneiros e prisioneiras, em sua grande maioria muçulmanos argelinos – os “abdulas”, como diz um dos torturadores, que ainda revela que o tratamento dado a europeus era “diferente” quando comparado ao reservado aos locais.

Alleg conta como estava disposto a morrer pela independência argelina, sendo chamado de “irmão” pelos demais prisioneiros argelinos. “E eu lia em seus olhos uma solidariedade, uma amizade, uma confiança tão integrais que eu me enchia de orgulho por ter, justamente como europeu, um lugar entre eles.” Essa resistência em não delatar nenhum dos companheiros também era vista com admiração pelos seus próprios carrascos. “Por que você não quer dizer nada? Não quer trair os seus amigos? Tem que ser corajoso para resistir assim”. Perguntam-lhe se já tinha sido torturado durante a Resistência francesa na invasão alemã à França durante a Segunda Guerra Mundial. “Não é a primeira vez”, retruca. “Muito bem, o senhor é dos duros”, observa um paraquedista.

Um general, em uma tentativa de fazê-lo convencer a colaborar com as autoridades francesas, pede para lhe apertar a mão, pois sente “simpatia” por ele e “admiração por sua resistência”. Esse mesmo militar comenta como pensam os oficiais que estão lutando na Argélia: o colonialismo é “uma palavra inventada pelos derrotistas”; a tortura era necessária, pois “não se vai à guerra com coroinhas”; a guerra já havia terminado há tempos, mas “os comunistas, os liberais, a imprensa ‘sentimental’ sublevavam a opinião pública contra os paraquedistas e os impediam de ‘trabalhar’.”

O livro foi escrito quatro meses depois de ter sido torturado. “Nunca foi tão árduo escrever”, comenta. Contrabandeou o manuscrito para fora da prisão, folha a folha, através do seu advogado, que o levou até as Éditions de Minuit, de Jérôme Lindon, que publicou o livro em fevereiro de 1958 com o título La Question. A tiragem de 60 mil exemplares logo esgotou nas primeiras semanas, trazendo à luz os métodos violentos do lado francês. Lida por Jean-Paul Sartre, André Malraux, entre outros intelectuais franceses, a obra fez com que a opinião pública questionasse a legitimidade política da ocupação francesa na Argélia, agravando uma crise política já instaurada internamente.

Desumanização

No momento atual em que o presidente Jair Bolsonaro e parte da população brasileira prestam homenagem a torturadores como Carlos Alberto Brilhante Ustra e a manutenção da tortura dentro das prisões brasileiras é providencial o relançamento pela Todavia de A tortura, lançada originalmente no Brasil em 1959 pela Edições Zumbi. É a persistência da velha retórica maniqueísta do “nós” versus “eles”, que busca a desumanização de ambos os lados para ser bem-sucedida.

Alleg conta o que comenta um “loirinho com sotaque parisiense” ao vê-lo na prisão: “Vejam só, um francês! Preferiu passar para o lado dos ‘ratos’ contra a gente””. Impossível não pensar em Frantz Fanon (1921-61) e seu Os condenados da terra, publicado em 1961, em que o psiquiatra da Martinica trabalhou em um hospital psiquiátrico na Argélia no contexto da guerra, envolvendo-se com a Frente de Libertação Nacional (FLN), partido socialista que liderou a luta pela independência argelina (e que governou o país até 2019, quando seu atual líder Abdelaziz Bouteflika foi obrigado a renunciar em abril do ano passado em meio a um movimento de protestos populares chamado de Hirak).

Fanon escreve sobre a retórica da desumanização do colonizado pelo colonizador: “Por vezes este maniqueísmo vai até ao fim de sua lógica e desumaniza o colonizado. A rigor, animaliza-o. E, de fato, a linguagem do colono, quando fala do colonizado, é uma linguagem zoológica.” Nesse contexto, os argelinos para o oficial parisiense equivalem a nada mais que ratos. Como reação a isso, é pela violência que o colonizado vai recuperar sua humanidade perdida diante de um sistema que também é bastante violento. Ao mesmo tempo, a violência generalizada afeta tanto as vítimas quanto os perpetuadores da violência, como demonstrou Fanon ao relatar os casos que tratou na sua prática clínica, tanto entre argelinos quanto europeus. Segundo ele, os fatores que desencadeavam esses transtornos psiquiátricos eram “principalmente a atmosfera sangrenta, cruel, a generalização de práticas desumanas, a impressão pertinaz que têm os indivíduos de assistirem a um verdadeiro apocalipse.” Afinal, “a descolonização é sempre um fenômeno violento”, já havia constatado Fanon.

“Aquele ‘centro de triagem’ não era apenas um centro de tortura para argelinos, era também uma escola de perversão para os jovens franceses”, reflete Alleg sobre o local onde passou um mês sendo torturado sem passar por nenhum tribunal. Um local de desumanização generalizada. A guerra pode ter acabado oficialmente em 1962, mas aos traumas deixados por ela continuam vivos. “Teremos de tratar por muitos anos ainda as feridas múltiplas e às vezes indeléveis deixadas em nossos povos pela derrota colonialista”, profetizou Fanon.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de ireito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).