Literatura infantojuvenil,

Uma eternidade partilhada

Lembranças da infância em Moçambique inspiram autora a fazer ponte entre a ditadura brasileira e a guerra no país africano

01jul2020 | Edição #35 jul.2020

Os países acontecem no tempo. Num momento, um país brilha. No instante seguinte, escurece. Os nossos encontros com as terras são cruzamentos de duas entidades vivas. Terras e gente visitam-se reciprocamente. Lugares e pessoas trocam de alma, misturam-se num mesmo novelo vivo que é a viagem sempre inacabada. 

Andreia Prestes foi feliz no seu encontro com Moçambique. E recorda nesse belo livro as circunstâncias dessa recíproca revelação: ela, ainda menina, descobrindo o mundo; e a nação moçambicana, acabada de nascer, brigando para ser um novo país num mundo já tão cheio de bandeiras. A saudade de Andreia converte-se em palavra. Mas também se torna cor, vozes, panos e cantos. A essa arte de contar uma história em figuras e cores se junta Camilo Martins, o inspirado ilustrador. 

A ditadura militar tinha forçado a família de Andreia Prestes a fugir do Brasil. Parece que aconteceu há muito tempo. Mas a vontade de recriar essa ditadura voltou hoje a ser uma ameaça em terras brasileiras. Este livro não apenas recorda esse passado obscuro. Este livro é um alerta contra a possível renovação desse passado.  

Moçambique do livro é mais que uma geografia: é uma pátria infinita, um regresso reinventado à infância 

A família que escapava à perseguição política encontrou em Moçambique não apenas um refúgio, mas uma terra onde valia a pena voltar a nascer. Os moçambicanos lutavam pela consolidação de dolorosas conquistas: a liberdade, a justiça social, a independência nacional. Nem tudo era feito de felicidade. Acontecia naquela altura a guerra movida por Estados vizinhos contra essa nova nação africana, uma nação negra rodeada de regimes racistas brancos. Essa guerra matou 1 milhão de moçambicanos. E obrigou mais de 4 milhões de pessoas a procurarem, como já tinha acontecido antes com Lila, um refúgio no exterior. As memórias mudam de cor, mas a tristeza nunca toma conta da narradora. 

Recordar, reacordar

Andreia lembra um tempo em que a rua era um quintal. E a varanda da casa era a internet, o lugar onde sonho e realidade vinham brincar. Este Moçambique que Andreia e Camilo celebram é mais que uma geografia: é uma pátria infinita, um regresso sempre reinventado a que chamamos infância. O livro fala dessa infância não como uma nostalgia, mas como uma eternidade partilhada.
Ter infância é como o acordar dos versos de João Cabral de Melo Neto. “Acordar”, dizia o poeta, “é ter saída. Acordar é reacordar-se.” Nessa obra de recordações, nos reacordamos mais juntos, mais felizes, mais cheios de esperança. 

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Cultural
 

Quem escreveu esse texto

Mia Couto

É autor de Terra sonâmbula (Companhia das Letras)

Matéria publicada na edição impressa #35 jul.2020 em maio de 2020.