Divulgação Científica,

Ciência sem concessões

Duas novas edições de “A Origem das Espécies” finalmente fazem jus a sua importância

28nov2018 | Edição #19 dez.18/fev.19

Às vésperas de completar 160 anos, A origem das espécies continua fundamental. A principal razão disso é sua capacidade de emitir uma luz que serve de antídoto às tentativas obscurantistas, em pleno século 21, de apoio ao ensino do criacionismo como alternativa explicativa equivalente à teoria da evolução. A obra simboliza a vitória definitiva da ciência como forma de obtenção de conhecimento eficaz e transformador sobre a natureza.

Publicá-la em 1859, entretanto, foi comparável a “confessar um assassinato”, como declarou seu próprio autor, Charles Darwin (1809-82), ao amigo botânico Joseph Hooker (1817-1911), em uma carta de 1844, na qual anunciou ter vislumbrado a teoria que varreria do mapa a ideia de que as espécies são imutáveis.

Hoje, temos dificuldade de dimensionar o peso moral que um tratado como esse teve no século 19. Até então, a história natural era tradicionalmente tratada como matéria médica ou teológica. De um lado, os estudos aplicados sobre os diversos “produtos da criação” e, de outro, a interpretação do “livro da natureza” que, junto ao livro sagrado das Escrituras, conteria as mensagens de um criador: conhecer a natureza era conhecer a mente por trás da criação.

Não por coincidência, o pai de Charles, dr. Robert Darwin (1766-1848), ao ver os estudos de medicina de seu filho fracassarem por falta de vocação, sugeriu ao rapaz que estudasse teologia e, assim, se dedicasse à história natural. Não foi como membro da Igreja Anglicana, entretanto, que Charles Darwin se tornou ícone das disputas políticas entre religião e ciência que começaram bem antes do século 19 e perduram até hoje.

Na Inglaterra de Darwin, a ideia de natureza era forjada pela teleologia aristotélica e pelo mecanicismo. Os animais, assim como as máquinas, eram vistos como produtos de um criador-projetista: o que refletiria na perfeita adaptação dos organismos ao seu meio e a um lugar específico na “economia da natureza”. Essa visão harmônica, em que organismos projetados executam com precisão sua função em um cenário idílico, ficou conhecida como teologia natural.

Darwin bebeu da fonte do pensamento social e econômico do século 19 e dele extraiu o que lhe parecia aplicável à luta pela existência

A teoria era, acima de tudo, sobre o conhecimento da natureza e, como tal, Darwin a abraçou com entusiasmo. A partir da década de 1830, no entanto, o naturalista foi se afastando dela ao começar a formular sua própria teoria, muito mais eficaz, lógica, bela e corroborada por evidências oriundas de diversos ramos da história natural que, na época, incluíam geologia, botânica, zoologia, etnologia e antropologia.

Expedições naturalistas

Além de perseverante pesquisador, Charles Darwin foi um talentoso estrategista. Cada passo de sua formação o ajudou a alcançar o sucesso com seu livro. Durante seus estudos em Cambridge, ele se relacionou com clérigos naturalistas influentes que lhe abriram muitas portas, inclusive a da cabine do navio hms Beagle para uma viagem de circum-navegação. Durante a expedição, suas cartas contendo relatos geológicos passaram a ser lidas nas sociedades científicas inglesas e sua publicação, muito aguardada.

Nos intervalos dessa intensa atividade, ele especulava em seus cadernos sobre a transmutação das espécies e acompanhava as críticas veementes sobre ideias similares. Conhecia a fundo as críticas sofridas por seu avô, Erasmus Darwin (1731-1802), e pelo filósofo naturalista francês Jean-Baptiste de Lamarck (1744-1829), adeptos do transmutacionismo.

Darwin se inspirou no pensamento social e econômico do século 19 e dele extraiu o que lhe parecia aplicável à luta pela existência e ao sucesso reprodutivo de indivíduos dentro de populações. Ousou oferecer suas respostas para as questões abordadas no escopo da filosofia: quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Em suas anotações, especula que, tendo ele resolvido a questão sobre a origem dos seres humanos, quem conhecesse bem o babuíno contribuiria mais para a metafísica do que o filósofo John Locke (1632-1704).

O século 19 exigia novas práticas nas ciências: observação e experimentação, indução e dedução. Desse modo, ao se dar conta daquilo que a seleção feita pelo homem produziu nas espécies domesticadas, Darwin se valeu das observações e resultados de experimentação de criadores de várias partes do mundo — além de criar ele mesmo alguns animais. As teorias exigiam evidências produzidas pela observação.

A estratégia de Darwin consistia em seguir à risca os preceitos desse novo tempo. Para não ser ridicularizado como o autor anônimo de Vestígios da história natural da criação, lançado em 1844, ele precisava antes conquistar credenciais. Assim, dedicou-se por quase uma década ao estudo das cracas (crustáceos cirrípedes). Pelos dois primeiros volumes dessa obra, Darwin recebeu a medalha da Royal Society de Londres e sua credencial como taxonomista.

Foi nesse período, segundo Dov Ospovat (1947-1980), que Darwin abandonou por completo a ideia de “adaptação perfeita” dos organismos ao seu meio. Essa visão exigia, como corolário, que os indivíduos variassem muito pouco entre si para que não diminuíssem a eficiência do design. Ao se despir desse último acessório da teologia natural, ele estava pronto para produzir sua obra revolucionária.

Em 1858, Darwin recebeu a famosa carta de Alfred Russel Wallace (1823-1913) — outro naturalista inglês — que continha o manuscrito mostrando que ele chegara a uma hipótese bem parecida com a sua. No mesmo ano, a contribuição dos dois para a formulação da teoria da seleção natural foi apresentada à Linnean Society, e Darwin se apressou em concluir um resumo do que pretendia que fosse seu grande livro sobre as espécies. Esse apanhado se tornou a primeira edição de A origem das espécies.

Ao contrário dos relatos lidos na Linnean Society que passaram despercebidos, o livro alcançou um público diverso, mais amplo que o dos especialistas. Dividiu a opinião pública em torno da ação de um agente sobrenatural nas ciências da natureza e, principalmente, sobre o surgimento dos seres humanos e as consequências morais de seu materialismo.

O que nos torna humanos? O processo lento e gradual da seleção natural ou a intervenção direta de um ente sobrenatural? Darwin respondeu a essa pergunta por meio de um longo argumento. Bastou sugerir que a “luz será lançada sobre a origem do homem” para que o incêndio ideológico se alastrasse.

Ao disseminar sua perigosa ideia, Darwin inverteu a forma como o pensamento ocidental concebia a natureza. Segundo ele, a ordem e a complexidade surgem de baixo para cima, por meio de um processo lento e gradual operado por leis naturais: “a partir de um início tão simples, infinitas formas”. Não seria mais algo vindo de cima para baixo por meio de um ato de intervenção.

Pedro Paulo Pimenta providenciou ainda que o leitor tivesse acesso aos principais adendos à obra produzidos após a primeira edição

Apesar de icônico, o livro foi pouco lido por aqui. A primeira tradução portuguesa, pela Lello & Irmão, só apareceu em 1913. No Brasil, teve traduções de procedência e qualidade duvidosas. Neste momento em que novas aproximações estão sendo propostas entre as ciências ditas humanas e as ditas biológicas (façam uma busca pela promissora produção da emergente área da evolução cultural), as duas novas traduções brasileiras da primeira edição da Origem são extremamente bem-vindas. Quem tinha deixado para depois tem ótimos motivos para ler Darwin agora.

Tarefa nada trivial

A edições ora disponíveis agregam sabor especial, cada uma com tempero próprio, para essa obra inúmeras vezes reproduzida, traduzida, comparada, comentada, reescrita e até biografada. A falta de traduções de qualidade em nossa língua representava uma lacuna injustificável. Traduzir, porém, a grande obra de Darwin é tarefa nada trivial. Não é só o idioma inglês do século 19 que reforça o desafio: muito está em jogo nas escolhas das palavras por um autor que se vale de um jargão antigo para expressar o novo.

Darwin se referiu diversas vezes, em suas correspondências, à escolha de termos e palavras que julgou infelizes. Abandonou “descendência com modificação” pelo termo “evolução”, que era usado até então como “desenvolvimento” e se aplicava bem, por exemplo, ao desenvolvimento embrionário — uma das evidências para a descendência com modificação. Na primeira edição inglesa, o termo evolve, usado como evolução sensu Darwin, só aparece na última frase do livro. Em traduções portuguesas anteriores, aparecia como “desenvolvimento”, negando ao leitor acompanhar essa mudança relevante.

A tradução e o projeto editorial de Pedro Paulo Pimenta, publicados pela Ubu, resultam em um texto elegante, que faz justiça a Darwin e em uma seleção muito bem-feita de documentos essenciais para reconstruirmos parte da história da obra.

Temos agora, em português, os trabalhos que Darwin e Wallace apresentaram à Linnean Society. O temor de Darwin de perder a prioridade para Wallace na formulação da teoria da seleção natural incitou uma leitura superficial do manuscrito wallaciano: com a preocupação em identificar semelhanças, pouca atenção se deu às diferenças entre os autores. Agora os biólogos e demais leitores interessados podem fazer sua avaliação mais detalhada e justiça aos dois autores.

No calor da hora

Outra escolha muito feliz foi traduzir três resenhas sobre A origem das espécies publicadas na época em que a obra foi lançada. Elas ajudam o leitor a se situar nos principais debates que surgiram naquele tempo.

O botânico norte-americano Asa Gray (1810-88), conhecido aliado de Darwin, ilustra de forma didática como, mesmo entre amigos, as ideias de Darwin receberam críticas diversas — que levaram o autor a fazer sucessivas alterações até a publicação da sexta edição. Gray, que era teísta, menciona, aliviado, uma concessão feita por Darwin, já na segunda edição, com a inclusão de uma nova epígrafe que respondia à grande pressão exercida por personalidades que estavam incomodadas com o excesso de ateísmo na obra.  

Outro aliado, talvez o mais ferrenho, é o autor da segunda resenha. Thomas H. Huxley (1825-95) também aderiu apenas parcialmente às ideias de Darwin. Huxley, muito envolvido em estudos paleontológicos, era um grande crítico do gradualismo — tese à qual Darwin nunca fez concessões. De qualquer modo, com estilo e clareza, Huxley ajusta o foco sobre questões que possam ter ficado pouco claras na Origem.

A análise também chama a atenção para uma questão central à crítica da Origem: a seleção natural ainda não estava comprovada. Aquela época desconhecia a genética, campo que só surgiu no início do século 20. Darwin tentou dar conta do problema da origem da variabilidade, substrato fundamental da seleção natural, com o conhecimento disponível. Formulou uma teoria de hereditariedade que chamou de “hipótese provisória da pangênese”, apresentada em outro livro. Apesar de elegante pela lógica e capacidade explicativa, a hipótese se provou mais provisória do que ele imaginara.

As duas resenhas simpatizantes reforçam os cuidados que devemos ter ao adotar o termo darwinismo. Nenhum pensador abraçou integralmente todas as ideias de Darwin. Muito menos Wallace. Ele publicou, após a morte de Darwin, um livro, intitulado Darwinismo (traduzido pela Edusp), que pretendia enunciar o “verdadeiro darwinismo”, mas negava pontos centrais da teoria preciosos ao próprio Darwin.

O terceiro extrato traduzido foi escrito por Richard Owen (1804-92), mas publicado anonimamente. É uma crítica mordaz. Owen, um influente anatomista, teve posições ambíguas em relação à ideia de “descendência com modificação”.

Pedro Paulo Pimenta providenciou ainda que o leitor tivesse acesso aos principais adendos à obra produzidos após a primeira edição. Seu projeto editorial é agradável para o leigo e necessário para o iniciante em estudos darwinianos. A única crítica à belíssima e muito bem cuidada edição ilustrada da Ubu é quanto à falta de algum espaço nas margens para aqueles que não conseguem evitar inúmeras anotações nos livros.

Um país que pretenda se lançar seriamente no século 21 deveria ter nessa obra uma de suas inspirações para as futuras gerações

O ótimo trabalho produzido por Pimenta é complementado pelo livro da Edipro, cujo diferencial está no prefácio e na revisão técnica realizados por Nelio Bizzo, que representa o braço brasileiro do grupo de estudiosos em Darwin. Bizzo fez um trabalho cuidadoso, focado na aplicação precisa dos nomes dos diversos organismos mencionados. Além disso, incluiu notas de rodapé que complementam a leitura com inúmeros episódios de bastidores colecionados ao longo de sua carreira.

Um país que pretenda se lançar seriamente no século 21 deveria ter nessa obra uma de suas inspirações para as futuras gerações. Além do valor literário, A origem das espécies é uma declaração de amor à racionalidade e um marco de controvérsias que deveriam ter ficado no século 19.

Quem escreveu esse texto

Maria Isabel Landim

Professora da USP, é coautora de The Future of Natural History Museums (Routledge).

Matéria publicada na edição impressa #19 dez.18/fev.19 em novembro de 2018.