Divulgação Científica,

Consta nos astros

Obra de filósofo grego, fundador da tradição cética que influenciou Montaigne e Hume, separa as ciências falsas das verdadeiras

01dez2019

Como fica claro pelo título, este pequeno opúsculo filosófico tem por alvo a astrologia. E o ataque que desfere contra essa ancestral forma de interpretação dos céus, embora date do século 2 d.C., continua atual, porém não no sentido que talvez se imagine. A astrologia antiga, diferentemente daquela de nossos dias, tinha a pretensão de se instalar ao lado de outras ciências e valia-se delas, principalmente da matemática, para alegar um fundamento rigoroso para si mesma.

Sexto Empírico tem o cuidado de abrir seu escrito explicando ao leitor quais os princípios dessa ciência (chamemo-la por ora assim) em sua época, apontando, desde o início, para o equívoco daqueles que, “autoproclamando-se matemáticos e astrólogos, por um lado insultam de vários modos a vida comum, por outro lado erguem uma enorme barreira de superstição contra nós, e não permitem que se aja segundo a reta razão”.

Há, portanto, uma astrologia verdadeira e uma falsa. A primeira, “também chamada de astronomia”, ocupa-se de detectar relações regulares e constantes entre os fenômenos. A segunda toma como base “a presunção de que as coisas terrestres estão em simpatia com as celestes, e que as primeiras são a cada instante influenciadas de acordo com as emanações das segundas”, isto é, que há uma correlação entre o que se passa na abóbada celeste e o que se dá aqui na Terra. O astrônomo, ou verdadeiro astrólogo, vale-se da geometria para mapear os céus e compreender os fenômenos relativos aos astros; já o astrólogo prefere se perder em relações que ele mesmo traça entre ordens de coisas a rigor desconectadas entre si. Como se o destino dos homens, seja qual for a lei que o rege, estivesse indelevelmente ligado à posição dos astros no céu em determinados momentos da vida de cada um.

Contra os professores

A técnica de análise e refutação adotada por Sexto Empírico é esclarecida por Roberto Bolzani na orelha do livro (há orelhas que justificam sua existência), com as seguintes palavras: “Para toda e qualquer tese que pretende dizer como as coisas são em sua realidade e natureza próprias, há sempre argumentos da mesma força persuasiva em contrário”. Desfazendo o semblante da certeza, o filósofo que adota essa postura — conhecida por ceticismo — limpa o terreno para a produção de um conhecimento autenticamente experimental, não das coisas tais como elas são, mas tais como aparecem. No caso da (falsa) astrologia, deve-se examinar cada uma de suas teses e proposições para mostrar que, malgrado sua aparente solidez, elas são tão ou mais frágeis quanto outras, opostas a elas. Nesse caso, suspende-se o juízo e se põe de lado a questão da verdade ou falsidade envolvida em tais proposições.

Contra os astrólogos não é um panfleto de ocasião. Faz parte de um projeto mais amplo, intitulado “Contra os professores”, que critica as pretensões de outras ciências, do qual já foram publicados no Brasil, pelos mesmos tradutores e pela mesma casa editorial, Contra os retóricos (2013) e Contra os gramáticos (2014), em edições tão cuidadosas quanto a presente. A essas ciências, vítimas, como a astrologia, da malversação dos embusteiros, vêm se juntar outras, como a música, a matemática etc., que o filósofo tratará de defender, mostrando, inclusive, os seus limites. É uma ideia lúcida, estranha à nossa época, que confunde verdade com certeza e certeza com determinação completa. A concepção de conhecimento que transparece nos escritos de Sexto é mais sofisticada, e a tradição que ele inaugura é longa e profícua.

Além de filósofo, Sexto Empírico era médico. É uma credencial valiosa, que ele, porém, não ostenta. Mas, nas raras ocasiões em que o faz, o leitor se assombra com sua verve interpretativa. Assim, numa passagem de Contra os gramáticos, ele diz: “Se for preciso discorrer acerca da teoria médica, pode-se mostrar que muitas vezes até um epíteto lançado pelo poeta transmite um sentido profundo e científico, por exemplo, ‘gramíneo leito profundo em juncos’, de Homero. Pois isso significa, e o gramático não pode compreendê-lo, que a semente do junco é algo que conduz ao intercurso sexual, já que a cópula é chamada pelo poeta de leito”.

Pois bem, e o que os tais astrólogos não compreendem? Entre outras coisas, isto: “Se, com efeito, quem nasceu na ponta da flecha de Sagitário será morto a flechadas, de acordo com o discurso dos especialistas, como então tantas miríades de bárbaros que lutaram contra os helenos em Maratona foram mortos a flechadas? Pois certamente o horóscopo não era o mesmo para todos eles”. Ou seja, mesmo quem nasce sob outra conjunção zodiacal e tem sua morte prevista de acordo com ela termina por perecer como qualquer um, dadas as circunstâncias, não celestiais, porém terrenas. O médico se deleita aí em desfazer o nexo entre o sintoma e a causa, que, como ele sabe bem, é menos direto do que pode parecer, e só se deixa fixar com segurança por uma observação livre de dogmas teóricos preestabelecidos.

Minucioso e incansável, Sexto Empírico percorre a astrologia falsa em detalhe, legando à posteridade, como observam os tradutores no prefácio, um valioso documento relativo aos saberes da Antiguidade. Pois, ciência ou não, o fato é que a astrologia vem sobrevivendo através dos tempos não apenas nos tratados dos doutos, como também na poesia e na pintura, fornecendo fértil material à imaginação humana. Mesmo em sua versão diluída, a que encontramos nas páginas dos jornais cotidianos, filtrada pela contracultura dos anos 1960, a “má” astrologia de Sexto não deixa de ter valor, até para o mais resoluto dos céticos: fabulação um pouco gratuita, ela dá o que pensar e tinge com as cores do épico dias destinados à banalidade. Isso significa que também os adeptos terão muito a apreciar nas páginas de Contra os astrólogos, reconhecendo nelas as origens da estranha arte que os fascina.   

Êmulos de Sexto

Outro deleite é acompanhar o autor em sua refutação, a um só tempo detalhista e monótona, que aplica o mesmo método a cada uma das partes da ciência e produzindo assim um efeito de reiteração, uma espécie de eco agradável que reverbera nos ouvidos do leitor. Foi o suficiente para me devolver a Contra os retóricos e Contra os gramáticos, ambos interessantes e surpreendentes. Lembrei-me ainda, lendo este cético, de outro, bem mais recente que ele, o jovem David Hume, no Tratado da natureza humana (1739), incansável êmulo de Sexto Empírico às voltas com as ficções da metafísica clássica. Sem mencionar Montaigne, com seus Ensaios (1580). O ceticismo prosperou no Ocidente como tradição intelectual das mais ricas, até hoje presente na filosofia, na ciência e na literatura.

Também o Brasil, país tão afeito a certezas não declaradas e, por isso, mais difíceis de serem identificadas — ou, pior ainda, pronto ao cultivo do dogmatismo, seja ele em versão científica, bacharelesca e beletrística (não falaremos aqui de religião) —, conta com uma tradição cética, que, embora recente, não deixa a desejar. Se não me engano, a obra de Sexto foi introduzida entre nós na década de 1970 por Oswaldo Porchat, autor de uma série de ensaios e livros que primam pela inteligência analítica e pela elegância expositiva. Desde então, não faltaram intelectuais e cientistas a recomendar e praticar a postura cética, que desconfia da fragilidade das essências e celebra a força das aparências.

Essa dupla posteridade — o ceticismo como filosofia aliada do conhecimento científico e a astrologia como fonte da fantasia criadora — é suficiente para fazer deste Contra os astrólogos um pequeno clássico.

Este texto foi realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira

Quem escreveu esse texto

Pedro Paulo Pimenta

É autor de A trama da natureza: organismo e finalidade na época da Ilustração (Editora Unesp).