Ciências Sociais,

Lacunas na nova esquerda

Ruy Fausto lança as bases para uma reconstrução do socialismo, mas se esquece das lutas identitárias

13nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

Caminhos da esquerda, de Ruy Fausto, é, sem dúvida, um dos melhores lançamentos do ano. O filósofo mobiliza um repertório extenso com um rigor correspondente ao calibre de sua erudição. Carrega o leitor pela história da esquerda, assinalando sucessos e fracassos com sinceridade de propósito, e termina compondo algo que, acredito, nem ele mesmo julgava possível: um livro pop. E não tem nada mais delicioso do que o pop não planejado, aquele que simplesmente é.

Fausto consegue enunciar o que deveria ser um “mínimo denominador comum” da esquerda: um projeto radicalmente democrático e essencialmente anticapitalista, ainda que no plano utópico. Discorre com eficiência sobre três patologias da esquerda e suas formas de manifestação no Brasil. Começa pelo autoritarismo (ou neototalitarismo), herança que muitos socialistas se recusam a deixar para trás. A seguir, trata do adesismo, o processo de degenerescência da social-democracia que termina por aderir ao sistema político e econômico hegemônico sem desafiá-lo, contentando-se com os pequenos ganhos possíveis dentro do jogo neoliberal. Enfim, fala do populismo e do perverso jogo de espelhos que as lideranças dessa natureza constroem, dificultando nomeá-las como tal.

Num momento em que, como Fausto descreve, a direita está na ofensiva em todas as frentes, o livro é um convite à reconstrução da esquerda — uma tentativa de tirá-la das cordas. Um chamamento ao diálogo, algo que parece estranho aos nossos olhos acostumados à repetição inócua de certezas, de teses que se pretendem imunes a antíteses e, por isso, incapazes de levar a sínteses. Propõe que a esquerda se disponha a errar novos erros.

Convite aceito, cabe à leitora (ou ao leitor) seguir adiante com Fausto e completar o quebra-cabeça dessa agenda renovada que precisa ser constituída com urgência. Nesse intuito, uma peça ausente merece nota. 

É flagrante no livro a ausência de menção ao feminismo, ao movimento negro e às demais lutas por igualdade de raça, gênero, etnia ou liberdade sexual — as chamadas “lutas identitárias” (as aspas se devem aos muitos problemas envolvidos nesse termo, que reifica a ideia da branquitude e da heteronormatividade como universalidades). No Brasil, hoje, essas são agendas vibrantes, que levam milhões às ruas por direitos. Seja do ponto de vista ideológico, seja do pragmático, é equivocado pensar na recomposição da esquerda brasileira sem incorporar as pautas desses movimentos como transversais numa nova agenda e reconhecer suas lideranças como nomes emergentes capazes de conduzi-la a novos caminhos. 

É bem verdade que tal ausência não deve ser considerada um pecado do autor. Do ponto de vista do feminismo, a direita brasileira sempre foi o pior inimigo, mas a esquerda nunca foi mais do que um namorado abusivo. Demandas muitas vezes ignoradas ou pouco atendidas (apesar dos reiterados votos de confiança de boa parte dos movimentos de mulheres) marcam a relação da esquerda no poder com o feminismo no Brasil desde a redemocratização do país. Embora esse também tenha sido um período de grandes conquistas, muito ficou no papel. E o que saiu dele, saiu com muito custo, muita luta.

A esquerda brasileira nunca foi mais do que um namorado abusivo do feminismo

Angela Davis diz que a esquerda marxista argumenta com frequência que a classe é a coisa mais importante, a opressão que precederia as demais e mereceria ser combatida primeiro. Claro que classe é importante, diz Davis — e eu ecoo. É urgente compreender que raça informa a classe. Gênero informa a classe. Que gênero, raça e tudo o que compõe a identidade do indivíduo são a maneira como a classe é vivida, experimentada. 

Defender o enfrentamento da desigualdade de classes ignorando as demais desigualdades e os privilégios que elas constituem é inocência ou interesse na manutenção de alguns desses privilégios. Fausto indica caminhos para a esquerda com tamanha competência que nos deixa com vontade de fazer parte de sua construção. Está aí um tijolo a mais que fará dela, certamente, mais sólida.  

Quem escreveu esse texto

Manoela Miklos

Assessora da Open Society Foundations, é curadora do blog #AgoraÉQueSãoElas.

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.