Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Ao genocida, a insônia

Adolf Eichmann, a abjeção política e moral que vem de Brasília e os matadouros do negacionismo

14jan2021

A pobre Hannah Arendt não tem nada a ver, é claro, com a banalização da “banalidade do mal” aqui no Bananão. De 2018 para cá pode-se até culpar a falta de imaginação crítica de articulistas – “ovo da serpente” e a “banalidade do mal” são os clichês mais gastos para descrever o indescritível que nos governa. Admitamos, no entanto, que não é nada descabido repetir a expressão, cunhada pela filósofa alemã no julgamento de Adolf Eichmann, o exemplar funcionário de Adolf Hitler, para referir-se à abjeção política e moral que se irradia de Brasília. Em última instância, a culpa mesmo, para valer, é da humanidade, esse projeto falido.

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Um veterano e discreto intelectual, a quem muito admiro, manifestou em mensagem particular de fim de ano sua convicção, que compartilho, de que não se aprende nada, neca de pitibiriba, néris, com o que vimos passando desde 2020. “A imensa maioria dos seres humanos”, me escreve ele,” é composta mesmo de girassóis de cabeça para baixo”. O tropismo da humanidade, parece inegável, é antes em direção à treva do que à luz.

Talvez por isso, mesmo depois de Eichmann e em certos casos até sob sua inspiração, uma horda de “funcionários do mês” continue administrando os matadouros do negacionismo diante de mais de 200 mil mortos na pandemia da Covid-19. Eles estão em todos os lugares, operam em todos os níveis: sustentam a legitimidade da participação “técnica” na barbárie de Estado, teorizam que a privatização da vacina é prática democrática e, de uma hora para outra, defendem o inalienável direito dos desvalidos, com quem nunca se importaram, de morrer dançando, aglomerados em festas mórbidas. Não fosse a covardia o que os une, poderiam sair tuitando por aí #somostodoseichmann.

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Cada vez que somos agredidos, pessoalmente e como parte da humanidade, por palavras e atitudes do Corrupto do Ano, assim eleito pelo consórcio de mídia Organized Crime and Corruption Reporting Project, penso que tão difícil quanto viver sob seu governo é escapar à sua lógica. É essencial não se deixar capturar pela retórica da violência e resistir à tentação de defender que essa gente, em geral muito religiosa, deveria ser julgada pela lei de talião.  

É aí que entra de novo Hannah Arendt, não na complexidade de sua reflexão, mas num comentário episódico e exemplar, quando em entrevista à televisão alemã, em 1964, minimiza as duras críticas ao tom nada solene com que trata o criminoso nazista em Eichmann em Jerusalém. “Eu realmente acho que Eichmann era um bufão. Estou lhe dizendo: eu li e reli cuidadosamente a transcrição de seu depoimento, 3.600 páginas, e perdi a conta de quantas vezes ri – gargalhei! Essa reação foi mal interpretada. Não posso fazer nada.” Contra o inominável, a derrisão.

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Em maio de 1960, Eichmann foi capturado pelo Mossad em Buenos Aires e levado a Israel para julgamento. Tinha 54 anos e, sob o nome de Ricardo Klement, vivia pacificamente, empregado numa fábrica da Mercedes. Era um cidadão de bem. Em julho daquele ano, Primo Levi escreveu “Para Adolf Eichmann”, aqui integrado à coletânea Mil sóis (Todavia), em tradução de Mauricio Santana Dias. No poema, Levi se pergunta o que terá a dizer, na prisão, o “precioso inimigo”, a “criatura deserta”, o “homem cercado de morte”, que tem como patrimônio “sua terrível arte incompleta” – ironia mordaz que honra os “treze milhões que ainda vivem” a despeito da propalada “solução final”.

Prisioneiro de Auschwitz por onze meses, o autor de É isso um homem? dispensa ao genocida o melhor tratamento que a ele se pode destinar. É um exemplo para nós. Por isso reafirmo aqui os votos de Primo Levi, originalmente dedicados a Eichmann, tendo em mente aquele que pensa poder nos destruir:

“Ó filho da morte, não lhe desejamos a morte.
Que você viva tanto quanto ninguém nunca viveu;
Que viva insone cinco milhões de noites,
E que toda noite lhe visite a dor de cada um que viu
Encerrar-se a porta que barrou o caminho de volta,
O breu crescer em torno de si, o ar carregar-se de morte”.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).