Jornalismo,

O túmulo do machismo

A ocupação das ruas de Madri é a recuperação de um espaço público onde até agora as mulheres não tinham o direito de se sentir seguras

13nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

“Madri será o túmulo do fascismo”, era o que se lia em um cartaz colado num dos arcos da Plaza Mayor e que se tornou o lema da resistência republicana durante a Guerra Civil. Naquela tarde, em frente ao Ministério da Justiça, centenas de mulheres adaptaram a frase à sua maneira: “Madri será o túmulo do machismo”.

O gatilho foi o julgamento de cinco homens acusados de violentar coletivamente uma menina de dezoito anos durante as festividades de San Fermín, em Pamplona, dois anos antes. A tradição consiste em que um homem espanhol de pura cepa — um branco, vestido de branco — corra ao longo de um quilômetro, em atitude desafiante ou estúpida (o que, no caso, dá no mesmo) à frente de uma manada bovina completamente descontrolada; a ideia é não se deixar ser pego pelo touro — porque isso seria coisa de “viado” — e passar o dia inteiro tentando tocar partes do corpo das mulheres, — de preferência sem o consentimento delas —, enquanto, em bandos, se embriagam no meio da rua.

Em uma dessas noites, cinco amigos de farra encurralaram uma menina na entrada de um edifício, a violentaram, gravaram e compartilharam as imagens em seu grupo de WhatsApp, chamando a si mesmos orgulhosamente de “La manada”. Consideram-se, eles próprios, touros que saem enlouquecidos do curral e correm pela cidade atacando mulheres pelas costas. 

O julgamento, que começou faz uns dias, acabou dando uma guinada cruel, porque insidiosa, no momento em que o juiz aceita como prova da defesa o relatório de um detetive particular arranjado por um dos advogados da manada. Ele seguiu a vítima nas semanas seguintes às denúncias e revelou uma mulher pouco traumatizada, que vai à faculdade, sai com as amigas, atualiza o Facebook e tem até uma foto no Instagram usando uma camiseta com os dizeres: “Seja lá o que fizer, tire a calcinha”. Ou seja, para a Justiça, se quiser ter alguma credibilidade, a mulher violentada deve colocar no Instagram fotos em que se possa vê-la chorando e com sinais fidedignos de que lhe destroçaram a vida; do contrário há indícios de que queria “pillar cacho”, outra expressão da cultura popular que aproxima sexo e touros.

Ao mesmo tempo, o juiz completa o ciclo da violência ao indeferir como prova as conversas do grupo de chat nas quais mais de uma vintena de sujeitos fala de violentar mulheres — um deles é policial e trabalha na delegacia de denúncias de violência de gênero; outro é militar — e das drogas favoritas para fazê-las perder a consciência. Prova, na verdade, de atos sistemáticos e de que estamos diante de estupradores em série.

O cartaz que minha filhinha carrega nessa tarde de manifestação diz claramente: “Pré-julgando a estuprada e não os estupradores? Justiça misógina”. Nas ruas de Madri, a cidade do acampamento do 15M e da resistência antifascista, cresce o grito de #YoSíTeCreo [acredito em você]: se o machismo judicial não acredita em você, nós, mulheres, acreditamos. Nós somos a sua manada, e dizemos isso com força, para que a menina sem nome nos escute, a menina de Madri, que agora está em Pamplona para apontar seus agressores, essa menina a quem, a cada dia, os jornais voltam a estuprar, revelando detalhes de sua identidade supostamente protegida, insinuando que ela se oferecia por vontade própria ao gang bang

Tudo é desproteção para nós. É papel molhado com nosso sangue. Uma máquina que funciona para nos responsabilizar: juízes que nos perguntam se fechamos bem as pernas. Gente que fala de nossa minissaia, de nossas noites de álcool, que diz que, se estávamos andando sozinhas, é porque procuramos o que encontramos. Nós no banco dos réus, eles na glória da impunidade. Uma mulher diz: “Prefiro sofrer outra agressão sexual a um novo julgamento”. Assim vivemos. Um julgamento como esse violenta ainda mais. 

Somos tantas que temos que levar os bebês no alto, por cima da cabeça das demais. As ruas se estreitam. Somos tantas que não encontramos nossas amigas, mas não importa, porque várias nos ajudam, abrem caminho para que possam passar as que estão mais atrás, em uma perfeita metáfora dessa revolução de mulheres. Há poucos anos, estivemos às portas desse mesmo ministério das injustiças, quando o governo tentou tirar das mulheres o direito de interromper voluntariamente a gravidez. 

Guerrilha Abortista

As mais jovens chamaram a ocasião de Guerrilha Abortista. “Somos más, podemos ser piores”, gritam as Scum Girls, com máscaras de Jason da Sexta-feira treze, e fazem estourar bombardeios de fumaça rosa e violeta feminista. Não têm nem dezesseis anos e já sabem o que é dormir com o inimigo em casa e sair para se defender, ou contar sua história no Facebook para assim fazer justiça, porque da outra não podem esperar nada. 

Aqui estamos, tomamos a Gran Vía, como outras vezes, somos uma horda de mulheres, e não consigo ver onde começamos nem onde terminamos. Há muito de empoderamento no ato de parar o trânsito, marchar, dançar, gritar, beijar a boca das amigas no maior cruzamento da cidade, ou como naquela manifestação em que, por essa rua cheia de grandes teatros e cartazes de musicais, levamos nos ombros, em procissão, a Santíssima Buceta Insubmissa, a escultura de uma rosada e gigante vagina. 

O #YoSíTeCreo pode ser escutado até Pamplona, tenho certeza. As mulheres desta cidade são fortes, são temíveis, como quando fizeram com que o Ministério da Justiça recuasse e interromperam a lei que voltava a penalizar o direito ao aborto. Na Puerta del Sol, no quilômetro zero da cidade, há pouco recordamos as mais de oitocentas mulheres assassinadas na Espanha, desde 2015, pelas mãos de homens que pensavam ser donos de suas vidas e de suas mortes. Certa vez, eu mesma me estendi no chão, vestida de vermelho, junto a outras também de vermelho, formando um grande rio de corpos de cor sangue, representando o sangue derramado das mulheres de aqui e de lá. 

Também saí com um grupo de companheiras peruanas: tínhamos desenhado um aparelho reprodutor feminino, com ovários e trompas de falópio nos shorts, para lembrar as sobreviventes das esterilizações forçadas empreendidas pelo governo Fujimori. “Somos as filhas das camponesas que você não conseguiu esterilizar”, gritávamos. Também somos as filhas das bruxas que não conseguiram queimar. E somos as mulheres que você não vai voltar a estuprar. 

Por isso, nos movimentamos pelas ruas de Madri, nos reapropriando da marca violentadora: “A manada somos nós”: há uma dor comum que nos convoca. Porque todas temos sofrido acosso, abuso, violência. Algumas de nós já falaram e nossas vozes têm sido colocadas em dúvida. Outras ainda se calam. Pilhagem sexual e dignidades arrasadas. Estado cúmplice e cidade sequestrada. A ocupação em manada destas ruas não é um ato simbólico, é a recuperação real do espaço público onde, até agora, não tínhamos o direito de nos sentirmos seguras. Por isso gritamos: “A rua e a noite também são nossas”. Sempre. Madri será o túmulo do machismo ou não será. [Tradução de Livia Deorsola].

Quem escreveu esse texto

Gabriela Wiener

Escritora peruana radicada em Madri, é autora de Sexografias (Melusina).

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.