Arquitetura e Urbanismo,

Casa para inglês ver

Em plena crise habitacional, que os cidadãos de Londres atribuem à imigração, prefeito quer controlar alta do aluguel

01ago2019 | Edição #25 ago.2019

No dia 19 de julho, o prefeito de Londres, o trabalhista Sadiq Khan, divulgou uma proposta para controlar os valores dos aluguéis. Desde 2010 os preços do setor privado têm subido em velocidade três vezes superior à renda média da população, inviabilizando que professores e enfermeiros, por exemplo, possam morar na capital britânica. 

Eleito em 2016 com uma plataforma voltada para a crise habitacional, Khan anunciava havia algum tempo sua intenção de barrar o aumento de preços em Londres e de reformar as regras do sistema privado para garantir mais direitos aos inquilinos. O anúncio, contudo, não tem efeito prático imediato: como prefeito, Khan não possui poderes suficientes para controlar a alta dos aluguéis. Mas tem peso político, pois leva a questão habitacional para o já polarizado debate em torno do futuro do país. 

A medida interpela o governo central, atualmente a cargo de um ex-prefeito de Londres, o conservador Boris Johnson, a implementar a proposta e a conceder maior controle para a prefeitura sobre o setor habitacional. Inspirado em programas que existem em cidades como Nova York e Berlim, o projeto se justifica com base em pesquisa conduzida pela prefeitura, que afirmou que mais de dois terços dos londrinos apoiam o controle dos preços. 

Os efeitos de um setor de aluguel cada vez mais caro e hostil às camadas  vulneráveis da população, aliado à falta de moradias sociais, ajuda a explicar o aumento da informalidade habitacional, tema da Crônica de Londres que assino na Quatro Cinco Um de agosto. 

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Há quase duas décadas, Ermínia Maricato, professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP) e idealizadora do Ministério das Cidades, discutiu em “As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias” a contradição de projetos urbanísticos que não davam conta da realidade urbana brasileira. Também chamava a atenção para o fato de que a cidade ilegal e autoconstruída — cristalizada na imagem da favela — não fazia parte do discurso oficial do planejamento urbano, sendo relegada, portanto, a um lugar fora das ideias. Ao recuperar a incontornável interpretação do crítico Roberto Schwarz desenvolvida nos anos 1970 sobre as “ideias fora do lugar” na sociedade brasileira do século 19, Maricato atualizou e expandiu a discussão para o campo do urbanismo. 

Chama a atenção a ausência de menções oficiais ao destino dos inquilinos dos galpões interditados

Em seu ensaio, Schwarz refletiu sobre o descompasso entre a teoria e a práxis que caracterizou a aquisição de modelos europeus pelas elites brasileiras. Ao mesmo tempo que as ideias liberais do Velho Continente eram consideradas superiores, elas se mostravam incompatíveis com a realidade escravocrata do Brasil da época e, por conseguinte, ao ser importadas, eram usadas meramente para “dar lustro” aos costumes que aqui se desenvolviam. Guardadas as especificidades dos diferentes contextos, o trabalho de Maricato sinaliza um problema ainda recorrente no campo urbanístico ao redor do mundo: o distanciamento entre políticas públicas e a realidade de que pretendem dar conta.

A mais de 8 mil quilômetros das costas tropicais brasileiras, Londres se encontra imersa em uma crise habitacional de proporções gravíssimas. Além das incertezas que rodeiam a saída da União Europeia, a discussão sobre a falta de residências a preços acessíveis e o aumento da habitação irregular na capital britânica vêm ganhando destaque crescente na mídia e na produção acadêmica. 

Camas em galpões

Centro econômico e tecnológico da Europa, Londres tem uma população que supera 8 milhões de habitantes, em uma região do mundo onde a maioria das capitais não ultrapassa a marca de 3 milhões. Ao lado de outras metrópoles como Nova York, Cingapura e Hong Kong, Londres é tida como uma das “cidades globais”: centros urbanos que desempenham papel dominante no fluxo mundial de recursos financeiros, além de abrigar sedes de grandes empresas e atrair talentos de todas as partes do mundo. Acima de tudo, são lugares aos quais se atribui o rótulo de desenvolvidos.

Não é novidade que nessas cidades ricas e dinâmicas se tornou praticamente impossível morar no centro com uma renda salarial baixa ou média. Embora existam especificidades locais, tais metrópoles estão na linha de frente de um processo mais amplo de financeirização da moradia. Ao mesmo tempo que a demanda e o valor de unidades residenciais sobem rapidamente, grandes centros urbanos se deparam com um número crescente de casas que ficam vazias boa parte do tempo, dado que foram compradas sobretudo como investimento. Em consequência da alta de preços, veículos jornalísticos como BBC e The Guardian alertam para o risco de Londres perder parte considerável de seus professores e enfermeiros, cujos salários não dão conta do custo de vida na cidade.

É em meio a esse contexto que o fenômeno conhecido como beds in sheds tem ganhado espaço na capital. Traduzido ao pé da letra, temos algo como “camas em galpões”. A típica casa britânica geminada é feita de tijolos e inclui um estreito jardim privado nos fundos, o qual muitas vezes abriga um galpão que serve de depósito. São justamente essas estruturas que proprietários alugam como moradias informais para inquilinos que não conseguem arcar com os custos do mercado formal, ou que não têm um perfil considerado adequado por agências imobiliárias, seja por terem empregos instáveis, por serem imigrantes ou por receberem auxílio-aluguel do governo.

Para construir os galpões não é preciso obter permissão do setor público e, sendo assim, “trata-se do único tipo de informalidade permitido pelo rígido sistema de planejamento urbano britânico”, nas palavras de um representante de uma das subprefeituras mais afetadas pelos beds in sheds — tanto ele quanto as outras pessoas entrevistadas para esta crônica pediram que não tivessem seus nomes divulgados. Por outro lado, caso as estruturas sejam erguidas com propósitos residenciais, é necessário informar a autoridade local e pagar o correspondente ao IPTU brasileiro. Isso não somente garante que as subprefeituras recolham recursos suficientes para providenciar serviços locais como coleta de lixo, mas também determina a alocação de infraestrutura, incluindo o número de postos de saúde e vagas em escolas, calculados com base na população local. 

Invisíveis

Ao serem alugados por debaixo dos panos, os beds in sheds abrigam uma população desconhecida do setor público. “Segundo registros oficiais, em Ealing moram 350 mil pessoas, mas nós também temos aquilo que chamamos de residentes invisíveis, e é difícil estimar quantos deles moram aqui”, afirma o subprefeito do distrito da zona oeste de Londres. O mais grave, entretanto, é que tais estruturas não cumprem requisitos mínimos de segurança e qualidade exigidos pela legislação habitacional britânica, já que não são sujeitas a vistorias. Falta de aquecimento e saneamento básico, além de fios desencapados, são alguns dos fatores que tornam os galpões insalubres e aumentam o risco de incêndios. O governo central se refere a eles como “armadilhas mortais”.

À primeira vista, os beds in sheds podem não parecer tão precários, sobretudo para olhares aclimatados à realidade da informalidade urbana de países do hemisfério sul. Ademais, escondidas atrás da fachada de casas de famílias de classe média, e visíveis apenas do jardim vizinho, as moradias não constituem algo visualmente similar a um assentamento informal. Contudo, o conjunto de regras próprias, os pactos informais e a vulnerabilidade daqueles que não possuem outra opção estão presentes.

Os beds in sheds são de conhecimento das autoridades públicas há pelo menos dez anos e afetam inúmeras cidades além de Londres, incluindo Manchester, Bristol e Oxford, embora a capital seja o palco principal do problema. A sua proliferação recente fez com que o governo implementasse duras medidas contra a prática, tais como processar os proprietários, demolir galpões irregulares e fazer buscas policiais amplamente divulgadas. Um dos objetivos principais dessas práticas é alertar proprietários de que aluguéis informais serão descobertos e punidos. Ao serem questionados sobre o sucesso de tais medidas na prática, representantes do setor público dão respostas evasivas. 

Se não for reconhecida como consequência direta da alta dos preços e da diminuição de direitos, a informalidade nunca será solucionada 

É impossível saber com precisão o número de estruturas alugadas de maneira irregular e, sendo assim, torna-se também inviável determinar se há uma redução decorrente da implementação das políticas públicas. Uma representante do Partido Conservador britânico estima que existam mais de 9 mil beds in sheds em Londres. Chama a atenção em falas e comunicados oficiais a ênfase na correção de comportamentos que fogem à regra por parte dos proprietários, e a quase ausência de menções ao destino dos inquilinos quando os galpões são demolidos ou interditados. Há evidências de que, ao se depararem novamente com as mesmas dificuldades para se inserirem no mercado de aluguel formal, os moradores expulsos procuram outras moradias em arranjos similares, muitas vezes no mesmo bairro. 

Produto de importação

Outro tema recorrente em entrevistas e documentos públicos é a associação entre informalidade e imigração. Em um primeiro momento, representantes do Ministério da Habitação e de subprefeituras afirmam tratar-se de um problema que atinge a população de maneira ampla, justamente pela gravidade da situação habitacional em Londres. Mas, à medida que eles entram em pormenores, o discurso muda.

Ao falarem sobre a concentração de galpões irregulares em determinados bairros de Londres, funcionários do setor de planejamento urbano afirmam que existe uma dimensão cultural que recobre os beds in sheds, segundo a qual tanto proprietários quanto inquilinos tendem a ser de países cujo sistema de planejamento urbano não é tão rígido e, portanto, eles não estão acostumados a cumprir regras. Nesse caso, o país de origem mais citado é a Índia. E, segundo uma funcionária da prefeitura de Londres, “muitas das famílias romenas vivem em condições chocantes, mas elas não têm consciência de que isso é errado porque elas vêm de uma região pobre, e pode ser que a situação não seja tão horrível para elas quanto é para nós”.

Devido à ausência de estudos oficiais sobre o perfil de inquilinos e proprietários dos beds in sheds, não se pode saber com exatidão se tais afirmações têm algum fundamento. É evidente, entretanto, a tentativa de estabelecer uma distinção entre o que é considerado parte do sistema inglês e o que é associado a países menos desenvolvidos. Sobressai, nessas falas, a imagem de que em Londres a informalidade, apesar de inserida em um contexto de falta de moradia e de um sistema de aluguel hostil às camadas mais vulneráveis da população, é algo que vem de fora, em vez de ser parte intrínseca da realidade londrina.

A busca por separar experiências ditas desenvolvidas daquelas consideradas de “Terceiro Mundo” não é restrita a esse fenômeno. Há todo um campo de estudos que se debruça sobre a parcialidade, dentro e fora da academia, que existe nas narrativas sobre diferentes contextos urbanos, e que busca desconstruir a dicotomia entre as “cidades globais” do hemisfério norte e as “cidades caóticas” ao sul do equador.

Reconhecida como uma importante linha de pesquisa no urbanismo, a teoria pós-colonial teve início nos anos 1970, na literatura, com a obra Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (Companhia das Letras), de Edward Said. Mesmo que as relações coloniais se desfaçam nos campos legal e econômico, as amarras culturais que deram lastro à relação de dominação por parte da metrópole sobre todas as esferas da vida nas colônias perduram e, portanto, persistem discursos que insistem na inferioridade de uns e na superioridade de outros.

Para usar os termos de Maricato, pode-se pensar que os beds in sheds fazem parte do campo das ideias em Londres, dado que o setor público reconhece o problema e propõe soluções para ele. No entanto, ao enxergar a informalidade como algo que se constitui fora de terras inglesas e que é importado por imigrantes, o governo percorre apenas metade do caminho. Não basta existir nas ideias se estas tomam o fenômeno como algo que, na sua essência, não faz parte do lugar. Se não for reconhecida como consequência direta de anos de alta de preços e de diminuição dos direitos de inquilinos, a informalidade em Londres nunca será solucionada. A reflexão vale para outros contextos. Agora que o planeta é majoritariamente urbano e que a crise climática bate à porta com cada vez mais força, enfrentar as diversas desigualdades que assolam as cidades é tarefa para ontem.

Texto atualizado em 9 de agosto

Quem escreveu esse texto

Mariana Schiller

É crítica literária e mestre em planejamento urbano pela Bartlett School of Planning, em Londres.

Matéria publicada na edição impressa #25 ago.2019 em julho de 2019.