Política,
Vozes da resistência
Apesar de reiteradas tentativas de silenciamento, mulheres negras nunca se deixaram calar, também na escrita fizeram quilombo
13mar2020 | Edição #32 abr.2020A insurgência feminina tem sido fundamental para os processos de transformação das relações sociais. Mesmo diante de diversas formas de silenciamento impostas às mulheres negras, são muitos os exemplos de resistência e enfrentamento construídos por elas também por meio da palavra.
Nem a impossibilidade de serem compreendidas em sua língua materna, nem brutais instrumentos de submissão e tortura no período da escravização puderam silenciar as mulheres que pariram a sociedade em que vivemos, ainda hoje estruturada pelo racismo. No passado de muitos de nós, há pelo menos uma mulher negra que foi escravizada e cuja voz se inscreveu em nossa memória. Enquanto os colonizadores apostavam na “docilidade” dos povos escravizados, construída a ferro e fogo, corpo e canto foram lugares de construção de resistência e de preservação de memórias.
Exemplo emblemático é Maria Firmina dos Reis, escritora negra, maranhense, que publicou o romance Úrsula em 1859 (Penguin & Companhia das Letras, 2018), durante a escravatura no Brasil. Voz potente que denuncia a escravização a partir de uma perspectiva até então inédita. Firmina foi a primeira autora a publicar um romance em nosso país. Pela primeira vez uma personagem feminina africana foi apresentada como sujeito, dotada de discurso fluente e contundente. Só uma escritora negra poderia nos dar Susana e sua versão de como foi sequestrada em África:
“Tinha chegado o tempo da colheita, e o milho e o inhame e o amendoim eram em abundância nas nossas roças. […] Era a primeira vez que me afligia tão incompreensível pesar. Minha filha sorria-se para mim, era ela gentilzinha, e em sua inocência semelhava um anjinho. Desgraçada de mim! Deixei-a nos braços de minha mãe, e fui-me à roça colher milho. Ah! Nunca mais devia eu vê-la… Ainda não tinha vencido cem braças de caminho, quando um assobio, que repercutiu nas matas, me veio orientar acerca do perigo eminente, que ali me aguardava. E logo dois homens apareceram e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira — era uma escrava. Foi em balde que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade; os bárbaros sorriam-se das minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. Julguei enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possivel…”.
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Quase inacreditável. Ainda sob pesadas correntes uma voz feminina denuncia a escravidão. Fica evidente a pertinência e a força da obra de Firmina em pleno século 21, em que permanecemos lutando contra injustiças que marcaram o 19.
Sabemos hoje do papel transformador da memória e da história contada em primeira pessoa. E foi por caminho estreito, abrindo picadas com os próprios pés (e mãos) que se constituiu, à revelia, a autoria negra no Brasil. Depois de Firmina, outra autora negra analisou como em nossa sociedade a supremacia do branco foi sendo construída, buscando impor o apagamento das culturas negras e indígenas. Assim como quem conta um causo ao pé do ouvido do leitor, Ruth Guimarães, com seu Água funda, de 1946 (Editora 34, 2018), com palavra afiada, ironiza, desafia e denuncia o projeto perverso que estrutura nossa sociedade ao contar a história da fazenda Olhos D’Água e como se dão as relações entre personagens que vivem numa cidadezinha mineira. Em uma passagem do romance, a narradora afirma: “A gente passa nesta vida, como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada”.
Entretanto, a própria vida e obra de Guimarães são reveladoras de que as águas por aqui jamais poderiam ser as mesmas. Esses dois romances são exemplos marcantes de como as mulheres negras têm atuado para instaurar lugares sociais e (re)construir identidades.
Da mesma forma, para citar apenas alguns nomes que têm recebido reconhecimento, temos Lélia Gonzales, Beatriz Nascimento, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, que vêm construindo importante legado. Um ainda árduo, mas já consistente caminho que torna possível um percurso como o da pesquisadora Fernanda Miranda que, em Silêncios prEscritos: estudo de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006) (Malê, 2019), afirma: “A literatura negra não apenas cria quilombos na ordem discursiva, ela também produz uma crítica corrosiva às estruturas da casa-grande, porque nos permite ler o campo literário filtrando nele suas posicionalidades em disputa”.
Poder político
Isso acontece no mesmo país em que as mulheres negras se encontram na base da pirâmide social, embora constituam mais de 26% da população brasileira. Fica evidente que contra as inúmeras formas de opressão sempre houve um movimento de tessitura de protagonismo. E nos últimos anos vemos mulheres negras, sobretudo jovens, ocupando com firmeza diferentes espaços, inclusive no Poder Legislativo.
O ano de 1932 marca a conquista do voto feminino no Brasil. É significativo já termos em 1934 Antonieta de Barros eleita a primeira deputada estadual negra por Santa Catarina. Outras como ela enfrentaram e afrontaram o racismo, o machismo e toda sorte de obstáculos para quebrar a hegemonia branca e masculina nas instâncias governamentais. Hoje já é possível fazer uma lista dessas mulheres — embora seja mais curta do que o necessário. É preciso fazer menção à incansável Benedita da Silva, que se elegeu, em 1982, vereadora pelo Rio de Janeiro, e depois foi eleita primeira senadora negra do país, assumindo em 1995. Em 2018, temos Érica Malunguinho a primeira mulher trans na Assembleia Legislativa de São Paulo.
Nesse contexto, em 2016, Marielle Franco foi eleita vereadora no Rio de Janeiro, com mais de 46 mil votos, e em 2018 se transformou em símbolo de lutas. Fundamental o reconhecimento da importância de seu trabalho, de seu profundo compromisso com os direitos humanos, de sua habilidade em mobilizar as pessoas para a ação. Mas muitos só souberam da sua existência após o seu assassinato em 14 de março de 2018. A comoção foi imensa e não apenas em âmbito nacional. Isso tem a ver não só com sua história e atuação social e política, mas também com o lugar que ela ocupa no nosso imaginário.
Marielle representa a filha de muitas mães, a mãe de muitos filhos, a companheira de muitas mulheres e de muitos homens. Uma brasileira que, ao escolher como principais bandeiras os atributos que convencionalmente seriam mobilizados para mantê-la fora dos espaços de poder — mulher, negra, pobre, moradora da favela, lésbica, ousada, insubmissa —, passou a incomodar de forma incisiva aqueles que viam em sua atuação ameaça a falsos poderes mantidos ao longo de séculos. Marielle desafiou “senhores” que não suportam contestação de sua autoridade forjada a ponta de chicotes. Sua execução foi ato covarde, tentativa de, assim como se fazia nos pelourinhos, calar uns para manter todos em silêncio.
Mas Marielle transformou-se em referência. Pode-se ver “Rua Marielle” em placas em paredes de casas, instituições, nas ruas da França, da Alemanha, de Portugal. “Marielle, presente!” tornou-se lema. “Quem mandou matar Marielle?” é pergunta que permanece ecoando há mais de dois anos. Seu nome, sua história e sua força transbordam, inspirando movimentos diversos, entre eles manifestos literários. A poesia e o canto eternizando como luta a memória-semente de Marielle Franco.
Nesse contexto, em reação à sua morte brutal, duas antologias foram produzidas em tempo recorde: Um girassol nos teus cabelos (Quintal Edições) e Espantologia poética Marielle em nossas vozes (Me Parió Revolução), ambas organizadas pelo Mulherio das Letras, reúnem poemas-manifestos de escritoras negras e não negras.
“Uma vez tombada pela perversidade e pela ignorância daqueles que acharam que podiam interromper uma existência tão grande, nossa irmã multiplicou-se”, afirma contundente a deputada federal Áurea Carolina na orelha de Um girassol nos teus cabelos.
Oito meses após seu assassinato, recebemos de Marielle mais um legado, upp – A redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro (n-1 edições, 2018). Fruto da pesquisa que realizou em seu mestrado, a obra faz ecoar também no campo acadêmico e editorial a voz de Marielle e a de todos que ela permanece representando.
Matéria publicada na edição impressa #32 abr.2020 em março de 2020.
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