Política,

O presidente confederado

Apoiadores de Trump se agarram a uma fantasia de superioridade branca que remonta aos anos 1860, mas não vencerão no longo prazo

28nov2018 | Edição #19 dez.18/fev.19

No 158º ano da Guerra Civil Americana, ou 2018, a Confederação segue dando continuidade à sua recente ressurgência. Suas vítimas são negros, é claro, mas também imigrantes, judeus, muçulmanos, latinos, pessoas trans, gays e mulheres que queiram exercer jurisdição sobre o próprio corpo. Os confederados batalham pela desregulamentação de armas e venenos — toxinas derramadas em rios, mercúrio das minas de carvão, emissões de carbono na alta atmosfera — e pela exploração de petróleo em terras e águas antes protegidas.

Parecem partir da premissa de que a proteção dos outros limita os direitos dos homens brancos — que deveriam ser ilimitados. Paulo Freire notou certa vez que os “opressores têm medo de perder a ‘liberdade’ de oprimir”. Nem todo homem branco apoia o prolongamento desse velho modo de dominação, mas aqueles que o fazem acreditam que seus privilégios se encontram sob ameaça, numa sociedade em que o poder das mulheres cresce e as mudanças demográficas conduzem para que brancos sejam minoria nos Estados Unidos em 2045.

A guerra que não terminou

Se você é branco, pode achar que a Guerra de Secessão acabou em 1865. Mas os protestos contra a Reconstrução, a ascensão das leis de Jim Crow, as miríades de formas de segregação, privação de direitos e liberdades e da violência contra os negros têm subjugado e punido essa população até os dias de hoje de um modo que poderia muito bem ser chamado de guerra. Vale lembrar que a Ku Klux Klan também odiava judeus e, à época, católicos; que o ideal branco era anti-imigrante, antidiversidade, anti-inclusão; que as bandeiras confederadas voltaram a ser hasteadas não no período pós-guerra dos anos 1860 e sim nos anos 1960, em resposta ao movimento pelos direitos civis.

Outra forma de falar dos Estados Unidos como país em guerra é notar que o número de armas em circulação é incompatível com a paz. Somos 5% da população mundial e temos 35% a 50% das armas que estão nas mãos de civis. Temos mais armas per capita que qualquer lugar do mundo, e mais mortes por arma também. Não é surpresa que tiroteios em massa — fenômeno quase inteiramente masculino e majoritariamente branco — sejam eventos quase cotidianos. 

Muitas sinagogas, centros judaicos, igrejas da comunidade negra e escolas públicas hoje fazem simulações que preparam seus frequentadores para um atirador — infeliz e ressentido, como aprendemos nas muitas reportagens dos atentados, e que se sente no direito de tirar vidas e está bem equipado para isso. O impacto psicológico desses treinamentos, o medo e os custos financeiros com segurança são o preço a pagar pelo acesso de pessoas a armas. Assim como as mortes.

Tivemos um presidente fervorosamente a favor da União por oito anos, e agora estamos há 21 meses sob o reinado de um presidente assumidamente confederado, que defendeu estátuas, valores e objetivos confederados. “Make America Great Again remete a alguma fantasia de dominação masculina branca pré-Guerra de Secessão. O acontecimento mais recente foi o ataque a um dos ganhos mais simbólicos depois do fim da guerra: a 14a Emenda da Constituição, que estende os mesmos direitos de cidadania a qualquer pessoa nascida ou naturalizada aqui.

Existe uma dose enorme de medo e raiva em relação a um país cada vez menos branco

Está em jogo a definição de “nosso” e “nós”. “Nós, o povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma união mais perfeita”, diz o preâmbulo da Constituição. Não fica claro quem é esse “nós” e quem é “o povo”. O documento distribui os representantes de cada estado de acordo com “o número total de pessoas livres e, excluídos os índios livres de impostos, três quintos de todas as outras pessoas”. “Todas as outras pessoas” é um jeito educado de dizer negros escravizados, que achavam a União bastante imperfeita. “Quem é o seu ‘nós’?” é o que perguntamos uns aos outros e aos nossos representantes eleitos.

“Vocês não vão nos substituir”, gritava uma multidão de homens brancos marchando por Charlottesville, estado da Virgínia, em 2017, na manifestação organizada em resposta ao plano de remoção de uma estátua do general confederado Robert E. Lee. Dylan Roof, que assassinou nove pessoas negras em 17 de junho de 2015, em Charleston, Carolina do Sul, declarou: “Vocês estão estuprando nossas mulheres brancas, estão dominando o mundo”. O “nós” dele se referia às pessoas brancas, talvez aos homens brancos, já que a expressão “nossas mulheres” parece considerar mulheres brancas propriedade dos homens brancos.

Dominar o mundo 

Existe uma dose enorme de medo e raiva em relação a um país cada vez menos branco. “Os Estados Unidos subtraem de nossa população 1 milhão de bebês por meio do aborto”, disse o político Steve King a uma revista austríaca de extrema direita. “Adicionamos à população cerca de 1,8 milhão de ‘bebês dos outros’, que são criados em outra cultura antes de chegarem aqui. Estamos substituindo nossa cultura americana duplamente a cada ano.” (Ele desconsiderou que quase 4 milhões de bebês nascem anualmente no país, mas precisão factual não é algo muito almejado pela extrema direita.)

O atual presidente insiste há quase três anos na ideia de que imigrantes e refugiados são criminosos que oferecem perigo ao restante da população, pontificando a favor de uma ideia de “nós” monumentalmente restritiva. Um entusiasta de Trump na Flórida enviou bombas para lideranças do Partido Democrata e progressistas famosos, alguns deles judeus. No Kentucky, dois negros idosos foram alvejados por um supremacista branco que já tentara invadir uma igreja da comunidade negra. 

Depois dos ataques, o presidente vituperou contra os “globalistas”, código antissemita para judeus, e, quando parte de seus seguidores fanáticos repetiu o nome de George Soros — um dos alvos das bombas —, gritando “cadeia nele”, o presidente repetiu a frase de maneira a reforçá-la. Então veio o massacre na sinagoga do dia 27 de outubro de 2018.

O foco do homem acusado de matar onze pessoas na sinagoga Tree of Life estava naquilo a que a extrema direita — o presidente, a Fox News e seus similares — o induzira, os refugiados da América Central, no sul do México: a “caravana”. Aceitando a ideia de que aquilo era uma ameaça, culpou os judeus em geral e, em particular, a Sociedade Hebraica de Auxílio ao Imigrante. “Todos os judeus devem morrer”, gritou, de acordo com os relatos, enquanto atirava em idosos religiosos com as balas rápidas de seu ar-15. Pouco antes postara: “Não posso assistir sentado enquanto meu povo é massacrado” — “meu povo” referindo-se, aqui, àquele “nós” restritivo ao qual os nacionalistas brancos incitam pessoas como ele a se identificar. (O suposto assassino também postou fotos de sua “família Glock” nas mídias sociais.)

Doenças extintas

A mídia de direita e o próprio presidente retrataram os refugiados como uma horda ameaçadora. “A insinuação de Trump de que pessoas do Oriente Médio teriam se unido aos refugiados surgiu logo depois de um convidado do programa de notícias Fox & Friends ter levantado a suspeita de que membros do Estado Islâmico teriam se infiltrado no grupo”, reportou o site de política The Hill. O vice-presidente, Mike Pence, justificou a especulação infundada com sua própria especulação sem nenhuma base factual. “É inconcebível que não haja pessoas de ascendência árabe numa multidão de mais de 7 mil pessoas que avança para nossa fronteira”, disse. Latino-americanos, que também são muçulmanos, que também são culpa dos judeus. 

A Fox News, revivendo uma tradição antiga e horrenda, alerta que os refugiados poderão nos infectar com doenças mortais (incluindo a varíola, erradicada desde 1980, e a lepra, talvez a menos contagiosa de todas as doenças contagiosas). Refugiados agressores. Um “eles” longínquo contra o qual mobilizar uma assustadora ideia de “nós”.

Nunca arrumamos a casa depois da Guerra Civil, nunca tornamos um anátema apoiar o lado perdedor, como fizeram os alemães depois da Segunda Guerra Mundial. Nunca conduzimos um processo de verdade e reconciliação, como fez a África do Sul. 

Permitimos que estátuas fossem erigidas por todo o país glorificando traidores e perdedores; tratamos a bandeira pró-escravidão como algo sentimental e divertido, como na série de tv Dukes of Hazzard, uma política de identidade branca. Um general aposentado, Stanley McChrystal, escreveu recentemente um artigo sobre como jogou fora um retrato de Robert E. Lee que manteve por quarenta anos. A ideia de que um soldado americano celebre o líder de uma guerra contra seu próprio país diz tudo sobre a distorção da memória aqui.

Talvez paz signifique criar uma narrativa tão convincente de abundância, possibilidades e bem-estar que encoraje as pessoas a saírem de seus bunkers e se aproximarem

O Washington Post publicou que um oficial sênior do departamento de Assuntos Veteranos finalmente tirou da parede de seu escritório o retrato de um general confederado que foi também o primeiro chefe da Klu Klux Klan do período da Reconstrução (1865-69), depois que funcionários, muitos deles negros, protestaram. Houve ameaças de morte contra os empreiteiros contratados para derrubar as estátuas dos confederados, em Nova Orleans, e uma disputa épica sobre a venda de bandeiras confederadas em feiras agrícolas no estado de Nova York. A Confederação, que deveria ter morrido há um século e meio, continua conosco, e o ataque recente à 14a Emenda é mais uma tentativa de nos trazer de volta a sua visão de desigualdade radical de direitos e proteções. 

Mesmo antes da fundação dos Estados Unidos, havia grandes conflitos entre os puritanos e outros cristãos que desejavam viver numa sociedade homogênea segregada e os pluralistas: entre o “nós” estreito e o abrangente. Judeus que sobreviveram à Inquisição espanhola escondendo sua fé encontraram refúgio na metade do século 17 no que hoje é o Novo México. Em 1657, moradores da região hoje chamada Flushing, no bairro do Queens, Nova York, publicaram o Flushing Remonstrance, manifesto a favor da tolerância religiosa (que incluía judeus, turcos e egípcios, bem como cristãos presbiterianos, independentes, batistas e quakers), para se oporem à tentativa da colônia holandesa de Nova Amsterdam de punir os quakers por sua divergência em relação à Igreja Reformada Holandesa.

O impulso pluralista e inclusivo nunca desapareceu. Está na recente arrecadação de dinheiro feita por muçulmanos para as vítimas do massacre na sinagoga e no trabalho deles para proteger cemitérios judeus nos últimos anos; no esforço de parentes de sobreviventes nipo-americanos dos campos de internação (criados em 1942, dentro dos eua, depois do bombardeio japonês em Pearl Harbour) para defender os muçulmanos depois do 11 de Setembro. 

Está em todo o trabalho de inclusão, libertação e solidariedade que foi feito desde sempre, na abolição e na luta pelos direitos humanos, inclusive pela Sociedade Hebraica de Auxílio ao Imigrante. Mark Hetfield, seu líder, tuitou recentemente: “Costumávamos dizer que recebíamos refugiados porque eles eram judeus. Agora dizemos que recebemos refugiados porque nós somos judeus.  Sabemos o que são perseguição e terror. Somos um povo refugiado”.

Não precisamos ser oprimidos ou ter vindo de uma história de opressão para estar do lado dos oprimidos; só precisamos de uma definição de “nós” que inclua pessoas de diversos lugares de origem, línguas e crenças religiosas, de qualquer orientação sexual e identidade de gênero. Várias cidades americanas grandes são lugares de coexistência cotidiana entre pessoas diferentes muito bem-sucedida. 

Muitos americanos se casaram com pessoas de raças e religiões diferentes, alguns se dedicaram ao trabalho de solidariedade, e muitos concordam com um “nós, o povo” grandioso e inclusivo. Os que não concordam não são a maioria, mas têm um impacto desproporcional, agora mais do que há muito tempo. A Confederação não ganhou na década de 1860 e não vai ganhar no longo prazo; contudo, parece que quer se retirar infligindo o maior estrago possível.

Alguns políticos apoiam o controle de armas; outros pertencem à nra (Associação Nacional de Rifles). Alguns querem tirar os direitos reprodutivos; outros são defensores fervorosos desses direitos tão essenciais para que as mulheres sejam livres e existam de maneira igualitária na sociedade. Alguns se opõem a tirar crianças de seus pais refugiados e colocá-las em gulags para bebês; alguns são entusiastas desse tipo de abuso. As diferenças são cristalinas.

No curto prazo, ganhamos muitos lugares nesta última eleição. No longo prazo, temos que terminar a guerra com uma vitória decisiva por uma ideia de união pluralística e pluribus unum (lema nacional dos Estados Unidos, “de muitos, um” em latim), com a afirmação de valores inclusivos, direitos humanos universais e de equanimidade entre todas as categorias. Os líderes judeus de Pittsburgh escreveram: “Presidente Trump, você não é bem-vindo a Pittsburgh até que pare de atacar os imigrantes e os refugiados. A Torá nos ensina que todo ser humano é feito b’tzelem Elohim, à imagem de Deus. Isso significa todos nós”.

Apesar dos resistentes

Muito tempo depois de Trump partir, teremos os soldados delirantes da Confederação e suas armas; acabar com a guerra significa acabar com a lealdade deles ao “nós” restritivo e à disposição convicta para atacar. Como Michelle Alexander nos lembrou recentemente, “toda a história americana pode ser descrita como uma luta entre aqueles que de fato abraçaram a ideia revolucionária de liberdade, igualdade e justiça para todos e aqueles que resistiram”. Ela argumenta que nós não somos a resistência; somos o rio que eles querem represar. Eles são a resistência, a minoria que tenta interromper o curso da história.

Talvez paz signifique criar uma narrativa tão convincente de abundância, possibilidades e bem-estar que encoraje as pessoas a sair de seus bunkers, baixar suas armas e se aproximarem. Isso significa fazer convites, não apenas repreensões — um trabalho longo, lento e complexo. Fiquei a semana toda com o verso da música “Like a Soldier”, de Johnny Cash, na cabeça. Como um soldado supera a guerra? Não sei, mas, se a guerra acabar, já ajuda.

Sei que muito do que torna os Estados Unidos miseráveis é a pobreza imaginária, a sensação de que não há o suficiente para todos, de que precisamos nos tornar coletores e acumuladores, de que temos de fechar as portas e, ad hoc, patrulhar a fronteira. Guerras são disputadas por causa de recursos, e essa é uma disputa sobre redistribuir os recursos e sobre quem preside essa distribuição. 

Somos uma terra vasta, um país de inigualável abundância — embora com problemas de distribuição absurdos —, um país que sempre foi diverso e que de tempos em tempos afirmou ideias de igualdade e direitos universais que um dia poderíamos de fato alcançar plenamente. Essa parece ser a única alternativa real para todos nós à guerra civil interminável. [Tradução de Julia Bussius]

Quem escreveu esse texto

Rebecca Solnit

É autora de Os homens explicam tudo para mim (Cultrix).

Matéria publicada na edição impressa #19 dez.18/fev.19 em novembro de 2018.