
A cobertura especial d’A Feira do Livro, que acontece de 14 a 22 de junho, é apresentada pelo Ministério da Cultura e pela Petrobras
MINISTÉRIO DA CULTURA E PETROBRAS APRESENTAM


A FEIRA DO LIVRO 2025, Poesia,
Lugares que inventamos
Em coletânea, Paloma Vidal explora questões sobre maternidade e morte enquanto transita entre espaços e idiomas
01jun2025 | Edição #94“Um albatroz é uma ave que parece não ser feita para voar / mas voa.” Quem conta isso não é Paloma Vidal, mas f., seu filho mais novo. Ou é o que imaginamos quando acompanhamos as histórias dos diários da autora, publicados entre 2010 e 2017 em seu blog. Nessas narrativas, em sua maioria curtas, vemos o universo de f. e de a., vozes de crianças que conversam com os nossos monstros — de crianças crescidas. Com questionamentos e pequenos sustos, Vidal nos leva a pensar o cotidiano de maneira não óbvia, escancarando o nascer e o crescer, as imprevisibilidades do gênero, da maternidade e da morte.
A autora, convidada da quarta edição d’A Feira do Livro, cria um quebra–cabeça poético ao longo de seis livros, recentemente compilados em um só, que parecem feitos de recortes que dão seguimento uns aos outros. São lembretes, angústias anotadas, cenas universais expostas em diferentes línguas e linguagens, sonhos e territórios estrangeiros. Nessa junção em ordem cronológica — de publicação, mas não necessariamente de narrativa — nasceu Lugares onde eu não estou, publicado em 2024.

No livro inicial, Durante, nos deparamos com os primeiros trânsitos, mudanças territoriais de uma família que passa a ver o pôr do sol pela janela. A vista é formada pelo parque do Ibirapuera, os prédios de Moema, um heliponto, um avião para Congonhas. A personagem a. é criança e já conhece todos esses símbolos. Tal como f., que passa a chamar semáforo de farol. Assim que se mudam para São Paulo, a. sonha em estar na praia, e chove.
Paloma escreve que as mães, no geral, dão pena, e que só as mães malvadas a fazem respirar aliviada
É nessa cidade que os sonhos — um caroço no peito, animais selvagens enjaulados, o filho com uma espada na mão — tornam-se cenário dos primeiros registros de medo da morte da narradora. As crianças tornam-se propulsoras de imagens e ensinamentos complexos, difíceis de serem encarados por uma pessoa adulta:
como quem não sabe o que diz, / a. se diverte: / ‘você é uma coisinha / e um dia vai virar / nada’.
Ali aparecem, também, os primeiros questionamentos da narradora sobre maternidade. Sobre ser mãe e, ao mesmo tempo, “uma mulher que chora na rua”. Ela é também filha — de sua mãe e, em uma inversão de papéis, por vezes, de seus próprios filhos:
Mais Lidas
digo: ‘vem para o colo’ / ele vem e não chora mais e fala de novo coisas / incompreensíveis. / então se detém e observa. / (nesses momentos eu sei que somos dois) / tira a chupeta e põe na minha boca.
Uma semana separa o último poema de Durante e o primeiro de Dois. Neste, Vidal continua explorando lugares e memórias — agora, estão em Buenos Aires —, o que nos conecta diretamente ao título da coletânea. As memórias dos lugares em que a narradora já não está aparecem por toda parte.
Tensionamentos
Integrados a esses temas, e ainda ao da maternidade e ao da morte, chama atenção a aparição dos primeiros tensionamentos de gênero.
f. conta histórias / que começam assim: / ‘era uma vez um menino / que se chamava mamãe’.
Paloma escreve que as mães, no geral, dão pena, e que só as mães malvadas a fazem respirar aliviada. Que uma mulher confundida é muito perigosa. Às vezes, cansada. Às vezes, fada do dente enganada. Que “meninos / não comem / fruta”. Que “meninos / não usam / óculos”.
O terceiro livro é Wyoming. Um dos lugares onde se passa é a rua Augusta, em São Paulo. Descobrimos que estavam ali quando “a. disse / seu / primeiro / ‘meu’”. Também somos levados ao Rio de Janeiro:
não sei se em algum / outro lugar / do brasil / ou do planeta / as pessoas chamam / de play / os plays ou se há plays / fora do rio da minha / infância.
O que mais se nota nesse livro é a imprevisibilidade, a ausência de sustentação, o fugidio. Paloma escreve: “eu sei / tudo / sobre segurar / o vento”, e tenta nomear o que não pode ser nomeado. E é justamente quando f. e a. recebem nome: Felipe e Antonio.
Frente ao estranho, ao que parece estar em desconexão, são eles que escolhem as palavras (ou as perguntas) certas: “hoje é / amanhã?”.
Vemos, ainda, o cansaço dessa mãe, que continua pensando sua condição:
fiz 39 anos / acordei de ressaca / com os berros do herói / preso na torre encantada. / ajudei-o a descer / e depois do nescau / me joguei no sofá da sala / como uma fera derrotada.
Em outros poemas, Vidal fala sobre quase-mães. Mães de filhas, filhas de mães, mães de mães e mães de ninguém. Crianças sem mãe e mães que desistem. E se pergunta: “quando o amor dura / ainda é amor?”.
Possibilidades
Agora estamos, com Paloma Vidal, questionando o gênero em espanhol. No cabeleireiro. Em Ushuaia, na Argentina. Estamos imaginando a morte da narradora ao atravessar a avenida del Libertador. Atropelada. O livro é Menini. Falamos, também, em francês. A literatura nos mostra narrativas em diferentes possibilidades. As inventadas por crianças, reescritas por adultos. Os estrangeirismos, as traduções. As mudanças nas infâncias, as falas não ditas, os linfomas, as perdas.
f., ou Felipe, por exemplo, já não quer mais saber por quê: “ele agora vai / direto / ao ponto: / o que é intervalo? / o que é arte? / o que é memória?”. E, se um albatroz parece não ser feito para voar, mas voa, um diário pode não ser feito para ser lido, mas é? No último poema de Menini, lemos:
todos os dias / eu perco / a oportunidade / de começar / um diário / com você.
Dublês e Arranjos são os últimos livros, inéditos, e dão continuidade aos anteriores, sendo publicados em 2024, fechando Lugares onde eu não estou. Eles arrematam a conexão entre as histórias e adicionam novas camadas: amor, relacionamentos amorosos, o que sobra do amor, uma tristeza pequena, a guerra na Síria como pano de fundo e perguntas — sempre perguntas, adultas, infantis — em diferentes idiomas.
Frente ao estranho, ao que está em desconexão, são os filhos que escolhem as palavras certas
Quando se vive entre línguas, qual se deve falar para, efetivamente, obter comunicação? Será que se faz necessário inventar uma linguagem própria? Será que a escolhida é a certa?
Quando muda a língua, muda também a voz, o sotaque. Vidal, nascida na Argentina, morando na França, faz sua narradora se passar por carioca: vender isso, um sotaque, algo que roubou de alguém. Todo o enredo carrega letras no lugar de nomes, e tentamos adivinhar os personagens. Um deles, k., tem um linfoma, como a copine de alguém. Será que p. é pai de a.? Será que é companheiro(a/e) da narradora? Se todos falam tantas línguas, será por isso a escolha da autora em usar letras para nomeá-los, criando, então, um nome universal a ser entendido em qualquer idioma?
Nesses livros finais, as crianças imigrantes já demonstram não ser tão crianças assim (“mãe / os pombos / se conhecem / entre eles?”), mas persiste o medo por ser a mãe que vê os filhos se tornarem novas pessoas, e aparece no inconsciente, em novos sonhos, no dia a dia: o chocolate quente de f. nunca é suficiente, ele derruba na mãe, que chora e diz que não vai nunca mais deixá-lo beber, mas sempre oferece de novo, e ele aceita, e não está bom, nunca está bom. Vidal, em sequência de poemas, nos lembra que nunca vai mesmo estar bom, e que a culpa materna vai continuar existindo, sempre e apesar de.
É nesse final que a narradora parece, de alguma forma, retornar. Ela volta a fazer listas. À própria cultura. Ao que é, e ao que não é mais. Quando se está de volta, com tanta bagagem, aparece borrado o próximo destino. “é a partir / do espelho / que eu me ausento / do lugar onde eu estou / uma vez que eu vejo / a mim mesmo / lá”, diz Paloma, porque disse Foucault. Mas é, mais uma vez, de uma criança que vêm as mais desconcertantes palavras, e por isso tão cheias de movimento, faíscas que colocam também a nós, leitores, em constante estado de mudança:
pra onde / mãe / me fala / pra onde / a gente vai!
A Feira do Livro 2025 · 14 — 22 jun. Praça Charles Miller, Pacaembu
A Feira do Livro é uma realização do Ministério da Cultura, por meio da Lei Rouanet – Incentivo a Projetos Culturais, Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos dedicada à difusão do livro e da leitura no Brasil, Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais, e em parceria com a Prefeitura de São Paulo.
Matéria publicada na edição impressa #94 em junho de 2025. Com o título “Lugares que inventamos”
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