Música,
Haja intensidade
Para a cantora e compositora Letrux, entrevista com Patti Smith em São Paulo foi uma sessão de análise, e seu show, um passe espiritual
21nov2019 | Edição #29 dez.19/jan.20Novembro costuma ser intenso. Astrologicamente é regido por Escorpião, signo que representa a intensidade, a profundidade. Calendariamente é o penúltimo mês do ano: aquele mês em que tentamos correr atrás de tudo o que empurramos com a barriga. Reuniões sobre projetos para o próximo ano, voltas à academia, mensagens para retomar contatos. Em dezembro as pessoas já estão viajando, literal ou mentalmente. Bebe-se quase todo dia para suportar o calor, delira-se mais por questões capitalistas ou familiares. Novembro é a véspera desse surto dezembrístico.
Estou em São Paulo, já passei pelas quatro estações no mesmo dia. Não há metabolismo que aguente. Chego ao Sesc Pompeia, sou recebida por pessoas excitadas com a tarde que estamos prestes a viver: Patti Smith dará uma entrevista para a editora Fernanda Diamant, e lerá trechos de seus livros. Entro antes das pessoas e acho minha cadeira na arquibancada do teatro. Dou boa tarde para as poucas pessoas presentes, mas talvez pelo nervosismo do trabalho ou pelo susto da boa educação, não me respondem. Existe uma eletricidade no ar.
Ouça entrevista sobre Patti Smith com Letrux no podcast 451 MHz
A porta se abre e surge uma aparição chamada Patti Smith. Ela diz: “Hi, everyone”. Todos respondem, eu suspiro. Os cabelos brancos enormes, trançados, uma senhora cheia de luz adquirida em anos de busca iluminada. Saber muito sobre quem se ama é emocionante. Patti foi a fundo em todos os seus amores. Poetas, amigos, amantes. Espero ir a fundo nela idem. É novembro, é intenso.
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Em 2006 fui ao Tim Festival, que, pra minha sorte de juventude, me trouxe grandes musas inspiradoras: pj Harvey, Bjork, Karen O (Yeah Yeah Yeahs) e ela, Patti Smith. Em 2006, eu estava começando a cantar, era o meu segundo ano experimentando essa “““gracinha”””. Eu tinha 24 anos mas sempre tive a alma idosa, então quando Patti entrou com seus sessenta anos no palco, cheia de sangue no olho e uma firmeza sã que esbarra na aparência de maluca — porém sem jamais perder o prumo —vibrei como nunca.
Vislumbrei ter sessenta anos daquela maneira: com viço. Divido signo com Patti: Capricórnio. Ela, 30 de dezembro. Eu, 5 de janeiro. É sabido que a gente vê o que a gente quer. E enxergo semelhanças. Peço licença e enxergo. Um dos meus trechos favoritos de Só garotos, seu livro de estreia, e uma das obras mais importantes do século, diz: “O artista busca entrar em contato com sua noção intuitiva dos deuses, mas para criar seu trabalho não pode permanecer nesse domínio sedutor e incorpóreo. Ele deve voltar ao mundo material para fazer sua obra. A responsabilidade do artista é equilibrar a comunhão mística com o trabalho criativo.
“Deixei pra trás Mefistófeles, os anjos e os restos de nosso mundo artesanal, dizendo: ‘Eu escolho a Terra’.”
Capricórnio é da terra, e por mais que o mar seduza, o ar se instaure e o fogo hipnotize, devemos escolher voltar pra terra, sempre. Não podemos fugir dessa sina. Sinto que.
Aos poucos começam a entrar: muitas pessoas jovens. Amo a roda da fortuna, o giro da vida. Um dia, a jovem Patti tremeu e se emocionou visitando os túmulos de Jean Genet e Rimbaud, e hoje jovens vão tremer e viver a emoção de ver Patti ao vivo.
Muito forte ver uma ídola viva. Ainda que com aura de entidade, Patti é muito real, e apesar de tantos seres diferentes, todos se identificam com tudo o que ela fala. São tantas pessoas que partem cedo deixando poucas obras (o próprio Rimbaud morreu com 37 anos), mas eis aqui, em plena tarde de novembro, Patti vivíssima e verdadeira, atravessando décadas, gerações, modas e mandatos. Ela conta que lia Alice através do espelho e achava que era um livro absolutamente lógico: “Eu conversava com a escova de dente, e ela respondia”, segreda a septuagenária sábia.
Durante uma hora, setecentas pessoas estão hipnotizadas por Patti Smith falando sobre qualquer coisa: de quando Johnny Depp deu um celular pra ela, já que o filho ficou preocupado em não saber onde estava a mãe. De como ela só ouve 20% das ideias dos editores, mas que esses 20% são ouro. Morri de ternura quando ela contou que desde criança sempre foi fascinada por livros, que os colocava embaixo do travesseiro para aprender, com três aninhos.
Das frases mais marcantes, penso numa que resume bem minha sensação no mundo. Perdi a conta de quantas vezes estou conversando com alguém, escuto o que está sendo dito, mas por algum motivo, que não falta de concentração, como Patti mesma disse, minha mente divaga e vai pra longe e cria mundos e fundos, histórias. No cinema, na cena de um grande beijo, não percebo as bocas se tocando, meu desvio me leva pra orelha da atriz e como, nesse formato insano que é uma orelha, enxergo uma Nossa Senhora. Ou uma baleia. Ou qualquer outra coisa.
E isso vira uma história. Patti me permitiu relaxar quanto a isso. Temos isso. Ouvimos histórias e enquanto ouvimos, inventamos outras. Conseguimos. A conversa termina, saio andando pelas ruas de São Paulo como quem acabou de sair da análise. Muitos insights, muitas interpretações dos meus últimos sonhos. Que sessão!
Passe
Passo o dia seguinte trabalhando mas sabendo que ao fim do dia terei a grande recompensa dos sonhos: o último show do Festival PopLoad é o dela. “People have the power”, ela surge nos avisando. Fazia frio mas não chovia. Haja metabolismo. Haja novembro. Haja intensidade. Aos poucos, fui sentindo um calor que só sinto quando estou num terreiro. Patti erguia os braços para o alto, com as duas mãos muito abertas, e bradava que precisamos ser livres. Senti que estava tomando um passe.
O show inteiro teve uma eletricidade constante, que culminou numa cena inesquecível: Patti Smith, 72 anos, arrancando as cordas da guitarra. Na força, arrebentando com as mãos. Patti não é inimiga do fim, sabe que as coisas terminam. Muito nobre.
O show acaba e saio como quem saiu de um terreiro. O dia anterior foi uma sessão de análise. O espetáculo era mais um passe. Vindo de uma pessoa comum, porém extraordinária, porém comum. Mágica? Talvez. Chorei, ri, me emocionei, agradeci a sorte de estar viva diante desse acontecimento.
No dia seguinte havia ainda um terceiro show dela. Um show mais intimista, próximo. Poderia ter tentado. Amo Patti Smith, sou devota, mas, no terceiro dia, optei por voltar à terra e gravar minha voz no meu futuro disco. Acho que ela entenderia. Minha voz saiu diferente. Agradeço, Patti.
Matéria publicada na edição impressa #29 dez.19/jan.20 em novembro de 2019.