Memória,
Um homem luz
Filho de Clarice Lispector relembra com carinho o pai, o diplomata Maury Gurgel Valente
30jul2020 | Edição #37 set.2020Mais atrás no tempo será difícil pesquisar. No início do século 17, Toussaint Gurgel, corsário alsaciano, casa-se com Domingas do Amaral no Rio de Janeiro, esta é a formação da família Gurgel do Amaral.
Esta família se divide depois por Ceará, São Paulo e Paraty, até onde sabemos, e Maury, nascido no Rio de Janeiro, é o carioca da gema, vem de parte de pai do lado cearense, do Aracati, onde tudo é Gurgel, as avenidas, praças etc. O pai de Maury tinha olhos azuis – assim, alguma influência holandesa ou mesmo portuguesa estava presente. Formou-se em odontologia, um dos primeiros na profissão pós-graduado nos Estados Unidos e teve consultório na Avenida Copacabana, esquina da Rua Bolívar, quando se jogava futebol na rua.
Já a mãe de Maury era de Belém do Pará, a família tinha seringueiras, banco etc., mas perdeu tudo quando os americanos inventaram a borracha sintética. A mãe, porém, ainda teve tempo de ser educada em Paris e Londres, cinco anos em cada lugar, e assim passou a ser professora de inglês e francês do prestigiado Colégio Pedro 2º, no Rio de Janeiro.
Assim estava formado o casal de classe média, dentista e professora, que vivia no Rio, onde Maury nasce, com os pés na Guanabara mas com a cabeça também no Nordeste e no Norte.
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A carreira diplomática estava na família desde o Império e seguiu pelo século 20, tanto pelo lado paterno quanto materno. E o sonho da mãe de Maury era que os três filhos homens se tornassem diplomatas. E assim foi feito, todos concursados – diplomata não era mais título nobiliárquico ou aristocrático, mas apenas funcionário público bem qualificado. Completava-se o circulo: dentista, professora, funcionário público do Ministério das Relações Exteriores, uma família carioca da década de 1940.
Diplomacia
Para habilitar-se ao concurso para diplomata, era pré-requisito formar-se em Direito na Universidade do Brasil, atual UFRJ. Lá apaixonou-se por uma colega, com quem veio a se casar em 1943, a nova Senhora Clarice Gurgel Valente, previamente Clarice Lispector, jornalista e escritora, que bem à frente veio a conceber este memorialista bissexto que aqui assina.
Seguiram os postos: ainda durante a Segunda Guerra Mundial, oficial de ligação com as tropas americanas em Belém; depois Nápoles, na Itália recém-libertada; Suíça; Inglaterra e Estados Unidos, onde o signatário calhou nascer.
Daí, Clarice Gurgel Valente resolve voltar para o Brasil com seus dois filhos pelas saudades das irmãs, dos amigos, do Brasil, com a vontade de trabalhar em português e deixar a vida de esposa de diplomata – um trabalho importante, mas pouco reconhecido e avesso ao seu temperamento íntimo, pelo excesso de formalidades e protocolos.
Carta de Maury Gurgel Valente enviada ao filho Paulo
Tanto para as preliminares históricas para situar o leitor, vamos agora ao personagem Maury.
Maury tirou o sexto lugar no difícil concurso do Itamaraty, uma boa colocação para as poucas vagas e muitos ficaram de fora; era, portanto, estudioso, com viés intelectual mas muito alegre, brincalhão; adorava esportes, futebol; fazia amizades muito rapidamente. Encostou nele, virou amigo de infância.
Na longa carreira diplomática, em cada mudança de país, se despedia dos amigos com a certeza de que assim continuariam e que faria novos com muita facilidade. Teve sempre, como ligação entre as missões, as funções semelhantes do Ministério das Relações Exteriores fora do Brasil, o que mantinha os laços com seu país. Foi designado para excelentes postos, admirado pelos colegas brasileiros e estrangeiros, foi secretário-geral para Assuntos Americanos no Palácio do Itamaraty, antigo Palácio Presidencial, na Avenida Marechal Floriano, na época chamada de Rua Larga. Aposentou-se com embaixador do Brasil na Holanda.
Uma rara observação: aos 39 anos foi nomeado embaixador do Brasil em Varsóvia, na Polônia, tendo sido um dos mais jovens embaixadores de todos os tempos, e despediu-se protocolarmente do então presidente João Goulart, nos idos de 1962, quando Jango olhou de lado e disse encabulado: “Embaixador, cuidado com os comunistas”.
Depois de aposentado, foi brevemente diretor do Museu Histórico e Diplomático no Palácio Itamaraty, dedicou-se a grupos de leitura de Cervantes, Shakespeare e, mesmo de cadeira de rodas, fez uma viagem a Stratford-upon-Avon para assistir às peças do bardo inglês que adorava. No final da vida, ouvia com este filho música clássica no recém-adquirido aparelho de compact disc, vulgarmente CD, a modernidade de então.
Enfim, um homem luz.
Matéria publicada na edição impressa #37 set.2020 em julho de 2020.