Literatura,

Uma tarde na Casa do Sol

Editor rememora o dia em que foi entrevistar Hilda Hilst, uma poeta irascível que o Brasil enfim aprende a amar

01jul2018 | Edição #13 jul.2018

Certa vez, conversando com o Waly Salomão, ele brincou comigo sobre a sua fama de irascível: “Nunca confie num poeta que não tenha um Exu dentro”. Para que um poeta que não assusta, não rompe com o controle, não quebra os ritos nem os pactos civilizatórios? 

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Ao contrário de outros países, o Brasil parece não gostar muito desse tipo de poeta — prefere aqueles mais alinhados à linguagem e ao poder estabelecidos. Há toda uma estirpe de poetas desvairados, desde o simbolismo, que sempre enfrentam a dificuldade de acesso ao público e à crítica, muitas vezes piorada por imensos problemas econômicos. Roberto Piva, Orides Fontela, Hilda Hilst são alguns dos mais proeminentes. Poetas cada vez mais consagrados, ganhando leituras e influência, agora que sobra apenas a obra, fora dos riscos dos transbordamentos das suas vidas. E, mais jovem e vivo, Guilherme Zarvos segue com grande beleza essa atitude ética e não conciliatória com o mundo em que vivemos. 

Hoje, Hilda é motivo de festa. Mas, nos anos 1990, ainda era uma marginal. Ninguém negava a potência de sua escrita, mas era lida apenas por um pequeno público e tinha boa parte de sua obra, especialmente a poética, fora de catálogo. Em rodas literárias, falava-se da dificuldade de lidar com seu temperamento. Se alguém por acaso fizesse a pergunta clichê “quem tem medo de Hilda Hilst?”, o que se veria ao redor seriam olhares envergonhados e cabisbaixos. 

Os esforços de retomada da sua obra ainda eram heroicos e escassos: Claudio Willer realizava uma leitura crítica acurada, ligando-a à tradição gnóstica; Fabio Weintraub se esforçava em lançar seus novos livros de prosa; Carlos Vogt a colocava como escritora visitante na Unicamp. Mas mesmo o esforço de Hilda (que ela não queria chique, mas pop) de conquistar o público por meio da literatura erótica não trazia a desejada atenção para os seus livros.

Se alguém fizesse a pergunta ‘quem tem medo de Hilda Hilst’, o que se veria seriam olhares cabisbaixos

Foi nesse contexto que decidimos entrevistá-la para a revista Azougue. A ideia era repetir o trabalho que havíamos feito com outros autores, como Roberto Piva e Afonso Henriques Neto, trazendo um depoimento e uma ampla antologia da sua poesia para apresentá-la ao público mais jovem. Conversamos com Fabio Weintraub, que mantinha uma relação próxima, de editor, com Hilda, e ele topou participar da entrevista e agendá-la. Marina Weis, que estava coeditando a revista, tinha o projeto de fazer um documentário de curta-metragem sobre a Hilda. Ela recusou, dizendo que não gostaria de se ver tão velha na tela de cinema. Uma pena, certamente teria sido um belíssimo registro. Mas topou, feliz, a entrevista e a antologia de poemas. 

Marcamos de ir para a Casa do Sol, onde ela morava, num sábado de manhã. Ela deu as instruções: que levássemos duas garrafas de vinho do Porto, uma para ela, outra para nós, para que fossem bebidas durante a entrevista. E uma de uísque para depois. 

No dia combinado, madrugamos e pegamos a estrada para Campinas. Chegamos lá numa bela manhã de outono e fomos prontamente recebidos por uma matilha de cachorros. Hilda estava na sala, e quando entramos nos apresentou um a um para os seus queridos cães. Brincou que a memória estava cada vez pior, mas que não esquecia o nome de nenhum. Visitamos a casa, ela nos apresentou o escritório e mostrou, orgulhosa, uma foto do seu pai. E então voltamos para a sala. 

Abrimos as garrafas de vinho e começamos a beber. Depois de alguns copos, Hilda disse que estava pronta. Ligamos o gravador e começamos. Ela estava afiada. Contava histórias, entre risos e rompantes de mau humor. Algumas vezes, caía em melancolia. Parecia uma montanha-russa, que tentávamos guiar numa conversa mais ou menos linear, o que parecia deixá-la entre exausta e angustiada. Algumas vezes, fugia do assunto e divagava. 

Eu não conseguia conter o meu espanto juvenil diante de declarações como: “Parece que a Simone de Beauvoir ficou lésbica depois de velha. Essa chance eu não tenho. Sempre tive medo da buceta, um medo mortal. É uma coisa tão escura, tão funda, parece que você está entrando numa gruta. A gente nunca sabe o que tem lá dentro. Pode ter uma aranha, um gato morto, ou sei lá o quê. Sempre tive medo da minha buceta, medo pânico. Ela me assusta terrivelmente agora. Nem olho. Fico pensando: ‘Meu Deus, o que será que vem por aí?’ Tenho medo de colocar o dedo lá dentro. Fico enojada e com medo. Não sei o que pode aparecer. Por isso nunca me masturbei. Como é que homem pode gostar de mulher? Acho uma coisa impressionante”.

Sentamos a seu redor, começamos a ler nossos versos preferidos, enquanto ela chorava copiosamente

Ao final da entrevista, já todos embriagados do vinho e da conversa, Hilda perguntou se realmente gostávamos da sua poesia. Dissemos que sim. Então ela pediu que lêssemos para ela os poemas dela de que mais gostávamos. Foi uma cena marcante: sentamos a seu redor, eu no parapeito da janela, e começamos a ler nossos versos preferidos, enquanto ela chorava copiosamente no centro. Fizemos algumas rodadas de leitura, entrando cada vez mais numa realidade alterada que aquela Casa do Sol parecia fustigar.

Tudo ali dizia que tínhamos vivido uma experiência extraordinária, mas que aquela era a realidade cotidiana de Hilda: ela era alguém que havia se embebido tanto de vida, tanto de poesia, tanto de loucura, que havia se colocado em outro lugar no mundo. Da loucura que tanto permeia seus escritos, como ela bem definiu na entrevista: “Toda a minha obra é uma homenagem à loucura. É devido ao meu pai. O fato de ele ter ficado louco me impressionou muito. Mas eu achava lindo ser louco, porque diziam que ele era louco. Então eu sempre tive um deslumbramento muito grande pela loucura. Pode ser que eu seja louca também, tanta gente fala que sou…”. 

Dias depois, disse à Hilda por telefone que precisava de uma autorização dela para publicar os poemas na revista. Ela disse que ia pedir para um amigo enviá-la. Uma noite, chego em casa e tem um fax, reproduzindo um texto manuscrito: “Autorizo a Azougue a publicar os poemas de minha autoria. Hilda Hilst”. Liguei agradecendo, mas disse que, embora muito generoso, aquilo era temerário. Com um documento desses, poderíamos publicar até a sua obra completa. Ela riu: “Que publiquem, então!”. 

O desejo de Hilda por ser lida era tão grande que ela não se preocupava com os pormenores em torno disso: queria mesmo é que a sua obra circulasse. É uma felicidade saber que isto está finalmente acontecendo. Uma pena que não tenha sido em vida, o que a encheria de alegria. Que sirva de aviso para não repetirmos o erro, aprendendo que vale o risco lidar com nossos poetas irascíveis. 

Afinal, poesia é risco.  

Quem escreveu esse texto

Sérgio Cohn

É editor da Azougue e autor dos poemas de Um contraprograma (Patuá).

Matéria publicada na edição impressa #13 jul.2018 em junho de 2018.