Literatura israelense,

Inteiramente outros

Esquecida pela opinião pública, história catastrófica dos judeus do mundo árabe suscita produção literária vigorosa

26ago2022 | Edição #61

Uma peça vem sendo sistematicamente ignorada no quebra-cabeça que é o conflito árabe-israelense: os judeus originários do mundo árabe. Enquanto a questão dos refugiados palestinos, em parte expulsos, em parte migrados voluntariamente depois do estabelecimento do Estado de Israel em 1948, recebe atenção dos políticos e da opinião pública, a questão dos judeus do mundo islâmico foi simplesmente obliterada. E, no entanto, cerca de 800 mil judeus (número equivalente, aliás, ao dos refugiados palestinos em 1948) que viviam em países como o Iraque, a Síria, o Iêmen, o Líbano, o Egito, a Líbia, a Argélia, a Tunísia e o Marrocos e cujas comunidades estavam estabelecidas nesses lugares havia dois milênios (desde bem antes, portanto, do surgimento da religião de Maomé) sofreram perseguições, massacres, foram privados de suas cidadanias, de seus bens, de sua cultura, de tudo o que constitui a frágil noção de lar, e foram lançados a um exílio em torno do qual se faz um grande silêncio. Nenhuma das vozes que se engajam em prol da causa palestina jamais disse uma palavra sobre esse tema. Nunca se aventou compensação alguma.

A história dos judeus no mundo islâmico, mais antiga do que o próprio Islã, é complexa e não se deixa reduzir a poucos parágrafos. Houve momentos de convívio pacífico e situações de harmonia. Houve, também, tensão e violência extrema. Pairava sempre, porém, a assimetria implícita no conceito de dhimmi, a lei religiosa islâmica que assegura a um maometano superioridade sobre um judeu e o obriga a prestar-lhe reverência, tornando-o, portanto, vítima frequente de abusos aos quais não tem, legalmente, possibilidade de reagir.

A colonização do mundo islâmico pela França e depois pela Inglaterra, a partir do século 19, representa um novo capítulo: muito por influência da Alliance Israélite Universelle — que visava educar os judeus do mundo islâmico com parâmetros e valores das sociedades europeias e que estabeleceu uma grande rede de escolas em todo o Norte da África e no Oriente Médio —, esses judeus, ou parte deles, acabaram por desempenhar o papel de intermediários entre os colonizadores europeus e a população local. Em muitos casos, notoriamente o dos judeus argelinos, receberam cidadania francesa.

A criação do Estado de Israel foi motivo de revolta em todo o mundo árabe: incêndios em sinagogas e ataques a bairros judaicos foram seguidos por éditos que privavam os judeus de seus bens e de suas cidadanias. A situação agravou-se após a guerra de 1967, de maneira que hoje não resta, no mundo árabe, quase nada da longuíssima e contínua história de presença judaica. Os destinos dos judeus foragidos do mundo árabe foram, de um lado, o recém-criado Estado de Israel; de outro, a França, mas também os Estados Unidos, o Canadá e mesmo o Brasil, onde aportaram em número considerável, nos anos 50 e 60, judeus egípcios, expulsos e privados de direitos pelo ditador Gamal Abdel Nasser.

Desencadeante

O “novo” exílio judaico foi desencadeante de uma produção literária vigorosa, interessante, em idiomas diversos, que parte da memória do passado árabe-judaico, com suas glórias e desgraças, mas que poucas vezes transcendeu os limites que se costuma impor às “literaturas menores”. O pensamento revolucionário de Jacques Derrida, judeu argelino, é parte dessa cultura, assim como o do egípcio Edmond Jabès. Dentre os romancistas, um dos mais notáveis é o tunisiano Albert Memmi, autor de A estátua de sal (Civilização Brasileira, 2008). Valem destaque também os egípcios André Aciman, conhecido por Me chame pelo seu nome (Intrínseca, 2018), mas também autor do esplêndido Out of Egypt, e Lucette Lagnado, autora de O homem do terno de panamá branco (Objetiva, 2010); além do marroquino Marcel Bénabou e seu Por que não escrevi nenhum dos meus livros (Tabla, 2018).

A história dos judeus dos séculos 19 e 20 foi escrita por catástrofes e por tentativas de reagir a elas

A migração de judeus árabes para Israel foi um processo traumático: o Estado foi concebido pelos líderes do sionismo, de origem leste-europeia e orientação marxista-socialista, sobre paradigmas revolucionários. Pretendia-se fundar uma sociedade laica, secular, livre de desigualdades, centrada no enraizamento na terra ancestral, no ressurgimento da língua hebraica, no trabalho agrícola e na criação de uma cultura hebraico-israelense concebida como ruptura com a origem diaspórica e com a religião. Esses parâmetros eram estranhos à cultura dos judeus do mundo islâmico, desde sempre marcados pela religiosidade e pelo respeito às tradições, mas também influenciados pelo pensamento ocidental e pela educação republicana francesa da Alliance Israélite Universelle. Somem-se a isso sua ligação com culturas árabes e as origens berberes de muitos deles e o resultado é um estranhamento que não tardou a virar segregação: alienados dos paradigmas hegemônicos na cultura nacional, os imigrantes judeus árabes acabaram empurrados para as margens da sociedade: o termo mizrachi, “oriental”, passou a designar, de forma genérica (e pejorativa), judeus provenientes de contextos tão diversos quando o Iêmen tribal e a cosmopolita Alexandria.

“Outros” numa sociedade que buscava homogeneidade e consenso em torno de valores revolucionários, os mizrachim e seus descendentes revoltaram-se. Nesse contexto surge, em língua hebraica, mas também em árabe, já no final dos anos 50, uma literatura radicalmente política, pouco conhecida fora das fronteiras do país, de escritores como os iraquianos Shimon Ballas, Sami Michael e Eli Amir, o egípcio Itzhak Gormezano-Goren, o iemenita Mordechai Tabib e outros outsiders, cujas obras só mais recentemente passaram a receber atenção de editoras estrangeiras. Ami Bouganim, romancista e filósofo nascido no Marrocos, vive em Israel há meio século, mas marca seu distanciamento escrevendo em francês. Mais atuais são a jovem Ayelet Tsabari, de origem israeli-iemenita, que vive no Canadá e escreve em inglês, e Orly Castel-Bloom, de família egípcia, que se volta sobre as origens familiares.

Literaturas judaicas são sempre políticas: a história dos judeus dos séculos 19 e 20 foi escrita por exílios, expulsões, massacres e outras catástrofes e por tentativas, mais ou menos bem-sucedidas, de reagir a eles. Esses e outros autores têm muito a dizer sobre o assunto e vêm criando obras de altíssima qualidade, que merecem ser mais bem conhecidas.

Essa editoria tem apoio do Instituto Brasil-Israel.

Quem escreveu esse texto

Luis S. Krausz

Professor livre-docente da USP, é autor de Entre exílio e redenção: aspectos da literatura de imigração judaico-oriental (Edusp).

Matéria publicada na edição impressa #61 em julho de 2022.