Tradução de Rita Kohl
O que lembro do meu pai
Tenho muitas memórias do meu pai, é claro. Afinal, compartilhamos uma casa não muito grande, como pai e filho, desde que eu vim ao mundo até me mudar de lá, aos dezoito anos. Juntos, vivemos — como costuma ser entre pais e filhos — coisas divertidas e outras não tão agradáveis. Mas as lembranças que guardei com mais nitidez não são nem de um nem de outro tipo. São cenas simples e cotidianas.
Por exemplo, isto:
Certo dia, quando vivíamos na casa de Shukugawa (em Nishinomiya, na província de Hyogo), fomos até a praia para abandonar um gato. Não era um filhote, mas uma gata fêmea, já adulta. Não sei dizer por que decidimos abandoná-la, sendo que morávamos em uma casa com jardim e espaço suficiente para criar gatos. Talvez fosse uma gata de rua que resolveu viver conosco, ficou prenha, e os meus pais concluíram que não daria para cuidar dela e dos filhotes. A minha memória sobre essa parte não é clara. Seja como for, naquela época abandonar gatos era muito mais comum, e não particularmente malvisto, até porque não ocorria a ninguém a ideia de castrar o seu gato. Acho que eu estava nos primeiros anos do ensino fundamental, então devia ser em meados ou no final da década de 1950. Perto de casa havia uma agência bancária destruída pelos bombardeios do exército americano. As marcas da guerra ainda eram frescas.
E assim, numa tarde de verão, eu e o meu pai fomos abandonar aquela gata à beira-mar. O meu pai pedalava e eu, na garupa, segurava a caixa com a gata. Acompanhamos o rio Shukugawa até a praia de Koroen, deixamos a caixa no meio de um bosque e voltamos para casa, sem olhar para trás. Acho que a distância devia ser de uns dois quilômetros. Koroen era uma animada praia de banho, de mar limpo — ainda não haviam feito os aterros. Nas férias de verão, eu ia nadar lá com amigos quase todos os dias. Naquela época, os pais não pareciam se importar se as crianças fossem sozinhas para a praia, então nós aprendíamos a nadar naturalmente. O rio Shukugawa era cheio de peixes, cheguei a pescar uma bela enguia na sua foz.
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Eu e o meu pai deixamos a gata na praia de Koroen, despedimo-nos dela e pedalamos de volta para casa. Descemos da bicicleta comentando: “é uma pena, mas fazer o quê?”, abrimos a porta… e nos deparamos com a gata que havíamos acabado de abandonar, miando alegremente, de rabo espichado no ar. Ela estava de volta, antes de nós. Não consegui entender como ela fez aquilo. Voltamos direto, de bicicleta. O meu pai também não entendeu. Ficamos os dois sem palavras.
Eu me lembro bem da cara de espanto do meu pai, que aos poucos se transformou em uma expressão de admiração, e por fim de certo alívio. Depois disso, ficamos com a gata. Se ela queria tanto viver naquela casa, o jeito era deixar.
Sempre havia gatos na nossa casa, acho que convivíamos bem com eles. Para mim, eram amigos maravilhosos. Eu não tinha irmãos, então livros e gatos eram os meus melhores amigos. Eu adorava ficar na varanda (naquele tempo quase todas as casas tinham varandas de madeira abrindo-se para o jardim) tomando sol junto com um gato. Então, por que será que tentamos deixar aquela gata na praia? Isso é um mistério para mim, tanto quanto a questão de como ela chegou em casa antes de nós.
O dever de cada manhã
Mais uma lembrança do meu pai:
Todo dia, antes de tomar o café da manhã, ele se sentava de olhos fechados diante do altar budista butsudan e passava um bom tempo recitando sutras, concentrado. Quer dizer, não era bem um altar. Era uma pequena redoma de vidro contendo uma estátua de Bodisatva minuciosamente esculpida. Não sei o que aconteceu com ela depois que o meu pai morreu, nunca mais a vi. Desapareceu deste mundo e agora só existe na minha memória. Por que será que o meu pai recitava os sutras diante daquela estatueta e não de um butsudan de verdade? Essa é mais uma pergunta a que não sei responder.
Seja como for, o fato é que era uma atividade importante para ele, que indicava o começo de um novo dia. Ninguém podia incomodá-lo, e até onde sei ele nunca deixou de cumprir esse “dever” (nas palavras dele), nem por um único dia. As costas dele tinham um ar severo que desencorajava qualquer interação. Eu via algo de intenso e incomum na dedicação dele, algo que ia além da simples rotina cotidiana.
Uma vez, quando eu era criança, perguntei por quem ele recitava os sutras. Pelas pessoas que morreram na última guerra, respondeu ele. Pelos companheiros falecidos e também pelos chineses que foram meus inimigos. Não disse mais nada além disso, e eu também não perguntei mais nada. Alguma coisa no tom da conversa me fez parar. Mas não acho que tenha sido ele quem me impediu. Se eu tivesse perguntado, acho que ele teria me explicado melhor. Mas não perguntei. Deve ter sido algo em mim, e não nele, que me conteve.
* * *
Preciso dar algumas explicações sobre as origens do meu pai. Ele nasceu no dia 1º de dezembro do ano 6 da era Taisho (1917), como segundo filho, em um templo do budismo Jodo-shu chamado An’yo-ji, em Awataguchi, no distrito Sakyo, em Quioto. É parte de uma geração que só pode ser chamada de desafortunada. O breve instante de paz que foi a democracia Taisho já anunciava o seu fim quando eles ainda eram crianças. Em seguida, foram carregados pelas trevas da crise econômica do período Showa, depois pelo pântano da guerra contra a China e por fim pela trágica Segunda Guerra Mundial. E então tiveram que sobreviver, num esforço desesperado, ao caos e à pobreza do pós-Guerra. O meu pai, como qualquer outro de sua geração, suportou a singela porção que lhe coube daqueles infortúnios extremos.
O pai dele, Benshiki Murakami, nasceu em uma família de agricultores, na província de Aichi, mas ainda criança foi enviado como aprendiz de monge em um templo próximo, destino comum aos filhos que não fossem primogênitos. Ele se mostrou uma criança promissora e foi aprendiz em vários templos, até se tornar monge residente no templo An’yo-ji, em Quioto. Eu diria que foi um progresso notável, pois se trata de um templo grande para Quioto, frequentado por quatrocentas ou quinhentas famílias.
Kyoshi Takahama escreveu um haicai a seu respeito:
No portal
Do templo An’yo-ji
As flores da relva
* * *
Não tenho uma memória clara do meu avô, pois, tendo crescido na área de Osaka e Kobe, eu não ia muito ao templo da família do meu pai e ainda era pequeno quando ele morreu. Mas dizem que era um sujeito espontâneo e generoso, conhecido por beber bastante e por se embriagar. Era um bom orador, como o nome sugere — o caractere de ben significa “eloquência”, um monge competente e benquisto pelas pessoas. As poucas lembranças que tenho são de um homem carismático, de maneiras generosas e francas. Lembro-me de sua voz forte e distinta.
Os seis irmãos e a morte do meu avô
O meu avô teve seis filhos (nenhuma filha) e vivia com grande disposição. Porém, no dia 25 de agosto de 1958, às 8h50 da manhã, em uma passagem de nível da ferrovia Kenshin, que conectava Quioto e Otsu, ele foi atropelado por um trem e morreu. Era uma passagem de nível sem guarda, em Yamada-cho, Kitahanayama, Yamashina, no distrito de Higashiyama. Um tufão forte atingiu a região naquele dia (a ferrovia Tokai até ficou interrompida) e chovia muito, então o meu avô estava com o guarda-chuva aberto e deve não ter enxergado o trem que vinha fazendo a curva. Além disso, ele não escutava muito bem. Eu achava, não sei por quê, que isso tinha acontecido na madrugada do tufão, quando o meu avô voltava de uma visita aos frequentadores do templo, talvez um pouco embriagado. Mas, pesquisando os jornais da época, descobri que não foi assim.
Na noite em que recebemos a notícia da morte, quando o meu pai se preparava para ir a Quioto, lembro de ter visto a minha mãe agarrada a ele aos prantos, implorando: “Aconteça o que acontecer, só não herde o posto no templo!”. Eu tinha apenas nove anos, mas essa imagem está gravada até hoje no meu cérebro, feito uma cena marcante de um filme em preto e branco visto no cinema. O meu pai só assentia, calado e inexpressivo. Não falou nada concreto (pelo menos, não ouvi nada), mas acho que ele já tinha se decidido. Dava para sentir.
* * *
Como já mencionei, o meu pai era um de seis irmãos, todos homens. Três deles lutaram na segunda guerra sino-japonesa (1937-45) mas, por milagre ou por sorte, todos chegaram ao fim da guerra sem grandes ferimentos. Um ficou entre a vida e a morte no front na Birmânia (hoje Mianmar), outro foi um sobrevivente dos jovens yokaren* da Unidade de Ataque Especial, e por fim o meu pai, que também escapou por um triz (depois falarei mais sobre isso). Mas, pelo menos, todos escaparam com vida. Até onde sei, os seis filhos haviam sido educados para serem monges e tinham a qualificação necessária. O meu pai, por exemplo, tinha o grau shosozu, posição pré-intermediária na hierarquia budista, equivalente a segundo-tenente no exército. Na época do festival obon, os seis se reuniam em Quioto e dividiam entre si as visitas aos frequentadores do templo. Quando chegava a noite, encontravam-se e bebiam fartamente. O gosto pelo álcool devia correr no sangue. Acompanhei o meu pai várias vezes em Quioto nesse período, e o calor do alto verão era insuportável. Devia ser muito penoso rodar a cidade para visitar as casas, de bicicleta ou a pé, vestindo o traje religioso.
Então, quando o meu avô Benshiki faleceu, surgiu a questão urgente de quem ia ocupar o lugar dele. Quase todos os filhos já tinham sua própria família e profissão. A verdade é que a morte do meu avô foi um choque, ninguém estava preparado. Ele já tinha setenta anos, mas era um poço de saúde, e nada indicava que partiria tão cedo. Se não tivesse sido atropelado por um trem numa manhã de tempestade…
* * *
Eu não sei como foram as conversas entre os seis irmãos. O primogênito trabalhava na receita em Osaka, onde já havia chegado a chefe de seção, e o segundo filho, o meu pai, era professor de língua japonesa na Koyo Gakuin, uma escola privada na região de Kansai. Os outros irmãos também eram professores ou frequentavam universidades ligadas ao budismo. Dois haviam sido adotados por outras famílias e mudaram de sobrenome, uma prática comum. Seja como for, ninguém se prontificou a suceder ao meu avô. Um cargo assim, em um templo relativamente grande de Quioto, exige dedicação completa e pesa sobre toda a família. Os filhos tinham plena consciência disso. A minha avó era uma mulher rígida e severa, portanto seria um desafio para qualquer uma de suas noras viver no templo com ela. A minha mãe, para completar, era a filha mais velha de uma renomada família de comerciantes em Senba, Osaka (cuja loja pegou fogo durante a guerra), uma mulher de gosto mais extravagante, não levava jeito para ser esposa de monge em um templo de Quioto. Fora criada em um contexto cultural diferente demais. Não me surpreende que tenha chorado e implorado daquela maneira.
E também — isso não passa de uma suposição minha — tenho a impressão de que havia na família um vago consenso ou expectativa de que o meu pai fosse a escolha mais apropriada como sucessor. Ao lembrar o tom desesperado com que a minha mãe falou naquela noite, não posso deixar de pensar isso. Dizem que o filho mais velho, o meu tio Shimei Murakami, acabou indo trabalhar na receita depois da guerra, mas na verdade desejava ser veterinário. Ou seja, desde cedo ele já não pretendia ser monge.
O meu pai, ao menos aos meus olhos de filho, era uma pessoa naturalmente séria e responsável. Em casa, podia ser difícil e melancólico, principalmente quando bebia, mas no geral tinha um senso de humor saudável. E era um bom orador. Acho que, em vários aspectos, ele levava jeito para ser monge. Não herdara o espírito livre e franco do meu avô (pelo contrário, era um pouco nervoso), mas tinha modos gentis que passavam tranquilidade para as pessoas. E tinha também uma fé sincera. Acho que ele mesmo sabia disso — que daria um bom monge.
Ele gostaria de ter seguido carreira acadêmica e se tornado pesquisador. Eu me pergunto se não considerava, como segunda opção, a vida de monge, e desconfio que, se fosse solteiro, ele seria mais aberto à ideia de suceder ao meu avô. Mas, naquele momento, ele tinha algo a manter — o seu pequeno lar. Posso imaginar a expressão angustiada dele naquela conversa com os irmãos.
No final, foi o filho mais velho, Shimei Murakami, quem deixou o seu cargo na receita, se mudou para o templo com a família inteira e herdou o posto de monge principal. E, hoje em dia, é o primogênito dele, o meu primo Jun’ichi, quem ocupa essa função. Todos os seis filhos do meu avô, inclusive o meu pai, já morreram. O último — o que sobreviveu à guerra como yokaren — morreu há poucos anos. Era do tipo de pessoa que, ao ver carros de som de grupos de extrema direita passarem pelas ruas de Quioto, fazendo propaganda, dava sermões aos jovens: “Vocês só ficam aí falando esse tipo de coisa porque não conhecem a guerra de verdade!”.
Segundo Jun’ichi, Shimei só aceitou suceder ao pai no templo An’yo-ji por ver isso como responsabilidade sua, ou destino, de primogênito. Melhor dizendo, ele foi obrigado a aceitar. Na época, os frequentadores dos templos tinham muito mais poder do que hoje, e a família não podia agir como bem entendesse.
‘Abandonado pelos pais’
Quando era criança, o meu pai foi enviado para viver como aprendiz em um templo em Nara, provavelmente com a intenção de que ficasse por lá, como filho adotivo. O meu pai nunca mencionou isso. Ele não costumava falar sobre a infância dele em geral, mas acho que esse era um assunto específico no qual ele não queria tocar, nem comigo nem com ninguém. Tenho essa sensação. Eu só soube dessa história pelo meu primo Jun’ichi. Na época, era comum que famílias numerosas mandassem filhos, exceto o primogênito, para serem adotados por outras famílias ou para viverem como aprendizes em templos — tal como acontecera com o meu avô Benshiki. Porém, depois de pouco tempo naquele templo em Nara, o meu pai foi devolvido para a família. A justificativa oficial foi que o frio estava lhe fazendo mal à saúde, mas parece que ele não conseguira se adaptar ao novo ambiente. Depois disso, ele não foi mais enviado a nenhum outro lugar e cresceu no templo An’yo-ji normalmente, como filho dos pais dele. No entanto, sinto que essa experiência deixou marcas bem profundas no seu coração de criança. Alguma coisa no jeito dele me dava essa impressão, apesar de eu não ter nenhum exemplo específico.
Penso na expressão dele quando a gata que abandonamos na praia reapareceu em casa — primeiro espanto, depois admiração, e por fim alívio.
Eu nunca passei por algo assim. Fui criado — com certo cuidado — como filho único, em uma família totalmente comum. Então não compreendo, em um nível concreto e emocional, que sequelas o fato de ser “abandonado” pelos pais deixa no coração de uma criança. Só me resta usar a cabeça para imaginar como deve ser. Será que esse tipo de memória não se torna uma cicatriz invisível que, ainda que mude de formato ou de profundidade, acompanha a pessoa até o fim da vida?
Lendo a biografia do diretor francês François Truffaut, descobri que ele também foi separado dos pais quando era criança (praticamente rejeitado, como um estorvo) e criado por outras pessoas. Como resultado, Truffaut perseguiu, por toda a vida, em suas obras, o tema do abandono. Todas as pessoas devem ter, em maior ou menor grau, experiências pesadas das quais não conseguem se esquecer, mas que também não conseguem comunicar verdadeiramente a ninguém, com as quais viverão e morrerão, sem jamais narrá-las por inteiro.
* * *
Em Quioto, o budismo Jodo-shu é dividido entre a linha Chion-in e a linha Seizan, da qual faz parte o templo An’yo-ji, no bairro de Keage. Na verdade, talvez seja mais correto considerar o budismo Jodo-shu Seizan como uma organização religiosa com doutrina própria, distinta do budismo Jodo-shu Chion-in (entretanto, até os especialistas têm dificuldade em definir as diferenças entre essas duas doutrinas). A Escola de Estudos Seizan é anexa ao templo Komyo-ji, na cidade de Nagaokakyo. Hoje ela se chama Faculdade Kyoto Seizan e oferece vários cursos superiores, mas já foi uma instituição voltada apenas ao estudo do budismo. Para receber a qualificação necessária a um monge principal era preciso fazer um curso nessa escola e passar por uma ascese de três semanas no templo anexo, Komyo-ji (treinamento que incluía, nas estações frias, jogar água gelada na cabeça três vezes por dia).
O meu pai se formou na antiga escola ginasial Higashiyama (equivalente ao ensino médio atual) em 1936 e, depois disso, aos dezoito anos, ingressou nessa Escola de Estudos Seizan. Não sei que carreira ele gostaria de seguir, mas, tendo nascido em um templo, não havia muita margem de escolha. Durante os quatro anos do curso ele teria direito a adiar o serviço militar, porém se esqueceu de fazer o trâmite necessário para garantir isso (foi o que ele me disse). Portanto, em agosto de 1938, aos vinte anos, teve que interromper os estudos e se alistar. Era uma simples questão burocrática, mas, depois que um processo desses se põe em movimento, não dá mais para se desculpar e explicar que foi um engano. Organizações burocráticas e militares são assim. Os formulários mandam.
O 20º Regimento da Infantaria, em Fukuchiyama
O meu pai foi enviado para o 20º Regimento da Infantaria (Fukuchiyama), parte da 16ª divisão (Fushimi). O prédio do quartel desse regimento abriga agora o 17º Regimento da Infantaria da Força Terrestre de Autodefesa, mas no portão ainda há uma placa indicando a antiga designação. O edifício continua praticamente igual desde o tempo das Forças Armadas e hoje é um arquivo de documentos históricos.
O núcleo da 16ª Divisão era formado por três regimentos da infantaria: o 9º (Quioto), o 20º (Fukuchiyama) e o 33º (da cidade de Tsu, na província de Mie). Nunca entendi por que o meu pai, natural da cidade de Quioto, foi enviado para o regimento de uma cidade mais distante, Fukuchiyama, e não para o 9º.
… Quer dizer, isso é o que eu sempre achei que havia acontecido, mas, pesquisando, descobri outros fatos. O meu pai não foi do 20º Regimento da Infantaria, mas sim do 16º Regimento de Transporte, que também fazia parte da 16ª Divisão. E o quartel-general desse regimento ficava em Fukusa/Fushimi, na cidade de Quioto, não em Fukuchiyama. Por que, então, eu estava convencido de que o meu pai estivera no 20º Regimento da Infantaria? Mais adiante voltarei ao assunto.
* * *
O fato é que, por achar que o meu pai fizera parte do 20º Regimento, demorei muito tempo para tomar coragem de pesquisar o histórico militar dele. Depois que ele morreu, passei cinco anos pensando que devia fazê-lo, sem nunca tomar uma atitude.
Por quê?
Porque o 20º Regimento da Infantaria é famoso por ter sido o primeiro a chegar à cidade de Nanquim após a sua queda. As unidades oriundas da província de Quioto tinham fama de tranquilas (inclusive, eram menosprezadas como “tropas de nobrezinhos”), mas as ações desse regimento tinham a reputação de serem muito sangrentas. Por muito tempo desconfiei que o meu pai tivesse participado da batalha de Nanquim como membro dessa unidade, e por isso eu nunca quis pesquisar a fundo o histórico militar dele. Também nunca tive vontade de perguntar diretamente a ele, enquanto estava vivo, detalhes do que ele viveu na guerra. E assim, sem que eu perguntasse nada e sem que ele me dissesse nada, o meu pai morreu em agosto de 2008, em um hospital em Nishijin, Quioto, aos noventa anos, em razão de um diabetes severo e do câncer que se espalhara por todo o corpo. A longa batalha contra a doença enfraquecera o corpo dele, mas a mente, a memória e a fala continuaram firmes até o final.
* * *
O meu pai foi recrutado em 1º de agosto de 1938. Foi em dezembro do ano anterior, 1937, que o 20º Regimento da Infantaria entrou para a história, por sua bravura ao ser a primeira tropa a chegar a Nanquim. Portanto, o meu pai não poderia ter participado dessa batalha por quase um ano. Essa descoberta foi um alívio, tirou um peso das minhas costas.
Depois da batalha de Nanquim, o 20º Regimento tomou parte em confrontos violentos por toda a China. Em maio do ano seguinte, renderam a cidade de Xuzhou, ocuparam Wuhan após uma batalha feroz, perseguiram o exército derrotado rumo ao oeste e seguiram guerreando no norte.
O meu pai embarcou em um navio de transporte no porto de Ujina em 3 de outubro de 1938 e chegou a Xangai no dia 6 do mesmo mês, como soldado raso especial do 16º Regimento de Transporte. Em terra, eles marcharam junto ao 20º Regimento da Infantaria. O livro de registros do exército japonês aponta que o regimento dele tinha como principais funções o abastecimento e a segurança, e que participou do ataque à cidade de Hekou (25 de outubro), da conquista de Anlu, no rio Han (17 de março do ano seguinte), e da batalha de Suixian-Zaoyang (de 30 de abril a 24 de maio).
Acompanhando esses movimentos, vemos que eles cobriram distâncias extraordinárias. Para tropas praticamente não motorizadas, num momento em que o combustível era insuficiente — cavalos eram basicamente a única força com que contavam —, deve ter sido extremamente difícil. A situação era crítica: a falta de víveres e munição era crônica, pois os suprimentos não alcançavam os campos de batalha, os uniformes estavam em farrapos, a falta de higiene levava à proliferação de doenças como o cólera. Muitos dos soldados sofriam de cáries, pois não havia dentistas suficientes. O Japão, com o seu poder limitado, não tinha como controlar um país gigantesco como a China. Ainda que, graças à sua força militar, conseguissem tomar uma cidade após a outra, na prática era impossível manter a ocupação de todo o território.
Os registros deixados pelos soldados que fizeram parte do 20º Regimento naquele período mostram a situação trágica em que se encontravam. Entre eles, há quem confesse com franqueza que infelizmente ocorreram massacres, e há também quem afirme de modo categórico que isso é mera ficção. De todo modo, foi para aqueles sangrentos campos de batalha da China que o meu pai foi enviado, aos vinte anos, como soldado das Tropas de Transporte. A propósito, Tropas de Transporte eram as unidades responsáveis pelo abastecimento, principalmente pelos cuidados com os cavalos de guerra. Para o exército japonês, que enfrentava uma falta crônica de veículos e combustível, os cavalos eram importantíssimos. Talvez fossem até mais valiosos do que meros soldados. Em princípio, essas tropas não tomavam parte na linha de frente dos confrontos, mas nem por isso estavam seguras. Dispunham apenas de armas leves (geralmente só baionetas) e muitas vezes sofriam ataques pela retaguarda que resultavam em danos graves.
Os haicais enviados do front
Logo que entrou para a Escola Seizan, o meu pai se encantou com os haicais, passou a fazer parte de um grupo de entusiastas e a compor muitos poemas. Na linguagem de hoje, eu diria que ele ficou fissurado. A revista de haicais da escola publicou algumas obras que ele compôs durante os tempos de soldado. Devem ter sido enviados do front pelo correio.
Pássaros migrando
ah, para onde voam?
para a minha terra
Soldado, mas ainda
monge, de mãos postas
diante da lua
Não sou especialista em haicais e me falta conhecimento para julgar a qualidade dessas obras, mas não é difícil imaginar um jovem intelectual de vinte anos compondo poemas assim. O que os sustenta não é a técnica poética, mas o sentimento absolutamente franco.
O meu pai estava estudando para ser monge, no interior de uma montanha em Quioto. Com muita dedicação, imagino. E então, por um pequeno erro burocrático, foi recrutado, submetido a um duro treinamento, depois lançado em um navio de transporte, com um rifle tipo 38 em mãos, e despachado para a guerra violenta nos fronts da China. As tropas lutavam sem descanso, em várias frentes, contra soldados chineses e guerrilhas que resistiam com fúria. Era um mundo completamente oposto às profundezas de uma montanha pacífica em Quioto. Isso certamente provocou um caos emocional, uma agitação e um conflito interior intensos. Em meio a tudo isso, escrever haicais parece ter sido um dos seus raros consolos. Essa forma — essa espécie de código simbólico — permitia-lhe expor, de modo relativamente direto e sincero, assuntos e sentimentos que, na prosa simples de uma carta, logo seriam barrados pela censura. Talvez fossem o único refúgio de que ele dispunha. Ele continuou a compor haicais por muito tempo.
A execução de um prisioneiro de guerra chinês
O meu pai me contou uma única vez, em tom de confidência, que a unidade à qual ele pertencia executou um soldado chinês, prisioneiro de guerra. Não sei qual contexto ou sentimento o levaram a me contar isso. Foi há muito tempo, então guardo apenas essa memória isolada, sem antes nem depois. Eu ainda estava nos primeiros anos da escola fundamental. O meu pai descreveu a execução calmamente, sem emoção. Disse que o soldado chinês, mesmo sabendo que seria executado, não se agitou nem se apavorou. Ficou sentado imóvel, em silêncio, de olhos fechados. E assim foi decapitado. Foi uma atitude realmente admirável, disse o meu pai. Ele parecia nutrir um respeito profundo por aquele soldado chinês, talvez até o fim de sua vida.
Não sei dizer se a execução foi feita pelos companheiros de regimento dele e o meu pai apenas testemunhou ou se o meu pai participou mais ativamente. Não tenho como avaliar se essa dúvida se deve à minha memória imprecisa ou se foi ele que narrou os fatos de maneira vaga. Seja como for, não há dúvida de que esse evento deixou na alma dele — de soldado e de monge — uma angústia enorme.
* * *
Naquela época não era raro, no continente chinês, que soldados novatos ou reservistas fossem obrigados a executar soldados chineses capturados, para que se acostumassem ao ato de matar. No livro Soldados do exército japonês (editora Chuko Shinsho), de Yutaka Yoshida, há o seguinte trecho:
“Shigeru Fujita recorda que, quando foi comandante do 28º Regimento da Cavalaria, do final de 1938 a 1939, orientou a todos os oficiais: ‘Para acostumar um soldado ao campo de batalha, o assassinato é um método conveniente. Em outras palavras, é um teste de bravura. Para isso, pode-se usar os prisioneiros. Em abril, quando chegarem novos soldados, devemos criar esse tipo de oportunidade assim que possível, para que fiquem fortes e se habituem à guerra’, […] ‘nesses casos, lâminas são mais efetivas que armas de fogo’.”
* * *
O assassinato de prisioneiros de guerra desarmados é uma atitude desumana que viola o direito internacional, evidentemente. Mas, para o exército japonês da época, parecia ser uma ideia óbvia. Inclusive porque as tropas em combate não tinham como tomar conta dos prisioneiros capturados. Foi justamente naquele período entre 1938 e 1939 que o meu pai foi enviado para a China como novato, então não seria nenhuma surpresa se os soldados de postos inferiores fossem obrigados a essas ações. A maioria das execuções era feita com a lâmina das baionetas, mas lembro que nesse assassinato que o meu pai descreveu foi usada uma espada militar.
* * *
Seja como for, esse relato de uma brutal decapitação com espada marcou intensamente a minha mente infantil, é claro. Guardei isso como uma cena ou, mais, como uma pseudoexperiência. Em outras palavras, eu diria que o meu pai transferiu para mim parte do peso — do trauma, na terminologia atual — que ele carregava durante anos. Assim são as conexões entre as pessoas, e assim é a história. Essencialmente, um ato de transferência, um ritual. Cada um deve receber a parte que lhe cabe, por mais desagradável que seja o conteúdo, por mais que se queira desviar o olhar. Senão, qual o sentido daquilo que chamamos de história?
O meu pai quase não falava sobre o que viveu no campo de batalha. Não deviam ser assuntos dos quais ele quisesse se recordar ou falar, tanto aquilo que ele fez com as próprias mãos quanto o que ele apenas testemunhou. Mas deve ter sentido que precisava transmitir pelo menos isso para mim, sangue do seu sangue. Ainda que aquela cena fosse permanecer como uma cicatriz no coração de ambos. Apenas uma suposição, claro, mas é o que eu sinto.
Departamento de Letras da Universidade Imperial de Quioto
O 20º Regimento retornou da China para o Japão no dia 20 de agosto de 1939. E assim o meu pai encerrou um ano de serviço militar e retomou os estudos na Escola Seizan. Logo em seguida, no dia primeiro de setembro, a Alemanha invadiu a Polônia e a Segunda Guerra Mundial eclodiu na Europa. O mundo adentrava um período de grande convulsão.
Os soldados costumavam ser recrutados por um período de dois anos, porém o meu pai prestou apenas um. Não sei por quê. Talvez o fato de ser estudante tenha contribuído para isso. O entusiasmo pelos haicais continuou após o término do serviço militar.
A Juventude
Hitlerista, cantando
atrai os cervos
(outubro de 1940)
Este deve ter sido inspirado por uma visita amistosa da Juventude Hitlerista ao Japão. Naquele momento, a Alemanha nazista era uma nação aliada ao Japão e lutava com vantagem na Europa, enquanto o Japão ainda não havia entrado em guerra contra os Estados Unidos e a Inglaterra. Não sei por quê, mas gosto desse haicai. Retrata uma paisagem da história — uma pequena cena em um canto da história — de um ângulo meio estranho e incomum. É impactante o contraste entre os cervos (provavelmente uma referência aos animais da cidade de Nara) e o vento sangrento que sopra dos campos de batalha ao longe. Os jovens da Juventude Hitlerista, que naquele instante se divertiam no Japão, talvez tenham encontrado seu fim nos duros invernos do front leste.
No aniversário
da morte de Issa,* eu leio
seus tristes poemas
(novembro de 1940)
Também nesse haicai há algo que me atrai. Retrata um mundo muito quieto e sereno, mas a superfície da água deve ter demorado um bom tempo para ficar tão tranquila. Sinto no fundo do poema o eco daquela agitação e desordem.
* * *
O meu pai sempre gostou de estudar. Os estudos eram, para ele, uma razão de viver. Era um grande apreciador de literatura e, mesmo depois de se tornar professor, passava bastante tempo lendo sozinho. A nossa casa sempre foi cheia de livros, o que pode ter contribuído para que eu me tornasse um leitor ávido na adolescência. Dizem que tirava notas muito boas. Ele se formou com honras na Escola Seizan em março de 1941, e mais tarde ingressou no curso de Letras da Universidade Imperial de Quioto. Não deve ter sido fácil passar na prova de admissão de uma universidade tão renomada, vindo de uma escola completamente focada nos estudos e no treinamento budista.
A minha mãe sempre me disse que o meu pai era inteligente. Não sei quão inteligente ele era de fato. Não sabia na época e não sei hoje. Quer dizer, na verdade isso não me interessa muito. Acho que, para alguém da minha profissão, não importa tanto se uma pessoa é inteligente ou não. Uma intuição aguçada vale mais que a inteligência. Então raramente avalio as pessoas por esse parâmetro. Nesse aspecto, o mundo acadêmico é bem diferente. Mas, seja como for, o fato é que o meu pai tinha um excelente histórico escolar.
Eu, de minha parte, nunca tive muito interesse pelos estudos, e as minhas notas nunca foram grande coisa, infelizmente (sinto que devo me lamentar). Quando gosto de um assunto, sou capaz de me dedicar com afinco, mas, quando não é o caso, não consigo me importar. Sempre fui assim. Então, desde os primeiros anos da escola até o ensino médio, os meus boletins nunca foram terríveis, mas também nunca foram motivo de admiração.
Insatisfação crônica, dor crônica
Isso deixava o meu pai no mínimo desapontado. Vendo os meus hábitos nada diligentes, imagino que ele comparava a minha vida à própria juventude e se exasperava: “Você, que nasceu nesta época de paz, poderia estudar à vontade, sem nenhum empecilho. Por que não se esforça?”. Acho que ele queria que eu ficasse entre os melhores da sala e que trilhasse em seu lugar o caminho que ele não pôde, impedido que foi pela sua época. Tenho certeza de que ele daria qualquer coisa por isso.
Mas não correspondi a essa expectativa. Não conseguia, de jeito nenhum, me dedicar aos estudos. Achava tediosa a maior parte das aulas, e o sistema de ensino, homogêneo e opressivo demais. Assim, o meu pai vivia com uma insatisfação crônica e eu, com uma dor crônica (dor esta que também continha, inconscientemente, raiva). Quando estreei como romancista, aos trinta anos, ele pareceu feliz por mim, mas àquela altura já havíamos nos afastado demais.
Carrego até hoje, até os dias de hoje, esse sentimento — ou os resíduos desse sentimento — de ter desapontado o meu pai, de não ter ficado à altura das expectativas dele. Depois de certa idade, passei a tratá-lo com irritação, “bom, cada pessoa tem o seu jeito!”, mas, durante a adolescência, era uma situação bastante desconfortável. Uma vaga sensação de culpa me perseguia constantemente. Ainda hoje sonho, às vezes, que estou fazendo uma prova na escola e não sei responder a nenhuma questão. O tempo vai passando, minuto a minuto, e não consigo fazer nada. Se não passar na prova, vai dar tudo errado… Esse tipo de sonho. Acordo suando frio.
Mas na época fazia mais sentido, para mim, ler os livros e ouvir as músicas de que gostava, sair de casa e fazer exercícios, jogar Mahjong com os amigos, ou então encontrar a minha namorada, do que ficar preso à escrivaninha, fazendo todas as tarefas e me esforçando para tirar uma nota um pouco melhor numa prova. E hoje posso afirmar, com convicção, que eu estava certo.
Acho que só resta a cada geração viver respirando o ar de seu tempo, sentindo pesar sobre os ombros a gravidade particular daquele momento. E amadurecer de acordo com as tendências que esse ambiente nos impõe. Para o bem ou para o mal, é esse o andar natural das coisas. Assim como os jovens de hoje estão sempre testando os nervos da geração dos seus pais.
* * *
Voltando ao assunto anterior:
O meu pai se formou na Escola Seizan na primavera de 1941, e no final de setembro do mesmo ano ele recebeu um aviso de convocação extraordinária. E assim voltou, no dia 3 de outubro, ao serviço militar. Primeiro esteve no 20º Regimento da Infantaria (Fukuchiyama), depois foi transferido para o 53º Regimento das Tropas de Transporte.
A partir de 1940, a 16ª Divisão ficou baseada permanentemente na Manchúria, e na sua ausência foi formada a 53ª Divisão, em Quioto, da qual fazia parte o 53º Regimento das Tropas de Transporte (a propósito, o escritor Tsutomu Mizukami também foi desse regimento, no fim da guerra). Na confusão que se seguiu à formação apressada dessa nova divisão, o meu pai deve ter sido enviado temporariamente para a tropa de Fukuchiyama.
E, por ter ouvido a respeito disso, achei que ele sempre estivera nesse regimento, desde a primeira convocação.
A 53ª Divisão foi enviada para a Birmânia em 1944, já no final da guerra, tomou parte na Batalha de Imphal e, de dezembro daquele ano até março do ano seguinte, foi praticamente dizimada pelo exército britânico na Batalha do Rio Irauádi. O 53º Regimento de Transportes a acompanhou em todos esses confrontos.
* * *
O mestre de haicai do meu pai, Noburo Suzuka (1887-1971, aprendiz de Kyoshi Takahama e membro da revista Hototogisu — há um museu com seu nome em Quioto), escreveu o seguinte no dia 30 de setembro de 1941, no seu Diário de haicais:
“Voltei pisando pelo lamaçal, pois voltara a chover […]. Ao chegar, soube do serviço militar de Chiaki.”
Varão, eu serei
mais uma vez escudo
outono da nação
Chiaki
Por “serviço militar”, ele deve estar se referindo à carta de convocação. O significado do poema é “eu, como homem, devo defender o meu país novamente, neste momento crucial”. Pelo contexto da época, creio que compor poemas como esse era a única alternativa. Mas é possível ler nele certo sentimento de resignação, principalmente na expressão “mais uma vez”. Pessoalmente, ele desejava viver uma vida de paz como acadêmico, mas o andar violento da História não lhe permitiria tal luxo.
A 16ª Divisão luta até a morte
Mas, numa reviravolta inesperada, a convocação do meu pai foi anulada dois meses depois, no dia 30 de novembro. Ele foi desmobilizado e pôde retomar a vida civil, apenas oito dias antes do ataque a Pearl Harbor. Se a guerra já tivesse começado, duvido que lhe concedessem uma decisão tão generosa.
O meu pai me disse que foi salvo por um superior. Estava servindo como soldado de primeira classe quando esse oficial o chamou e disse: “Você estuda na Universidade Imperial de Quioto, não é? Vai contribuir mais para a nação como estudioso que como soldado” e o dispensou. Não sei se um único oficial podia tomar esse tipo de decisão. Além do mais, considerando que o meu pai era um estudante de letras e não de ciências, não sei que grande “contribuição para a nação” ele poderia dar, voltando à universidade e estudando haicais (a não ser que o oficial estivesse pensando em muito longo prazo). Sempre achei que havia mais detalhes nessa história. Mas, seja como for, assim o meu pai ficou livre do serviço militar.
… Quer dizer, isso foi o que eu ouvi — ou pelo menos o que lembro ter ouvido — quando era criança. É uma anedota curiosa, mas infelizmente não corresponde aos fatos. Pois, pesquisando os registros de alunos da Universidade Imperial de Quioto, descobri que o meu pai só se matriculou no curso de Letras em outubro de 1944. Então não faria sentido o oficial se referir a ele como aluno dessa universidade. Algo deve ter se embaralhado na minha memória. Também pode ter sido a minha mãe quem me contou isso, e ela quem se enganou. Mas não há mais como checar o que de fato aconteceu, pois hoje a memória da minha mãe é embaralhada quase que completamente.
De todo modo, segundo os registros, o meu pai entrou no curso de Letras da Universidade Imperial de Quioto em outubro de 1944 e se formou em setembro de 1947. Não sei onde esteve nem o que fez dos 23 aos 26 anos, entre a dispensa do serviço militar, no outono de 1941, e o ingresso na universidade. A minha hipótese é que tenha ajudado no templo da família enquanto compunha haicais e estudava para o exame de admissão, mas não tenho certeza. É mais um mistério.
Logo depois que ele saiu do exército, a Guerra do Pacífico irrompeu e a 16ª Divisão foi despachada em um navio de transporte para um ataque nas Filipinas. Então, no dia 24 de dezembro de 1941, o 20º Regimento da Infantaria desembarcou na baía de Lamon, a leste da ilha de Luzon, onde enfrentou uma forte resistência do usaffe (Forças do Exército dos Estados Unidos no Extremo Oriente). Foi nessa batalha que morreu, com um tiro no peito, Sueo Oe, um segundo-tenente, o atleta que dividiu com Shuhei Nishida o segundo e o terceiro lugar do salto com vara nas Olimpíadas de Berlim.* Oe, natural de Maizuru, deu o último suspiro nos braços do irmão mais velho, médico de guerra, com quem se encontrara por coincidência.
A Divisão perdeu muitos homens no desembarque em Luzon, e logo em seguida recebeu ordens de seguir para a tomada da península de Bataan, onde sofreu um ataque destruidor do exército americano, que dispunha de um poder de fogo esmagadoramente superior. Depois, esse exército, evitando uma batalha decisiva em Manila, entregou a cidade aos japoneses como uma cidade aberta e se encerrou nas montanhas da península, conservando uma capacidade de 80 mil homens em nove divisões. O Estado-Maior japonês subestimou o poder militar do inimigo, cuidadosamente disposto ao longo da linha de defesa da península, e enviou as unidades de combate para a linha de frente sem armamento suficiente, com resultados desastrosos. Foram cercadas em meio à mata virgem, submetidas ao fogo cerrado da artilharia e esmagadas por tanques de guerra de última geração. Segundo a História do Regimento Fukuchiyama, no dia 15 de fevereiro de 1942 restavam apenas 378 soldados no 20º Regimento da Infantaria, além do comandante. Outra fonte diz apenas que a Divisão fora “praticamente dizimada”.
“[…] O povo da terra onde cresceu o Regimento Fukuchiyama jamais poderá se esquecer da península de Bataan, onde, por equívocos de avaliação e de estratégia, inúmeros companheiros deram a vida para defender a pátria, sem balas para atirar nem alimento para comer, os soldados tendo como travesseiro sua posição, e os artilheiros, seus canhões”, escreveu um soldado.
* * *
Quando essa dificílima batalha em Bataan finalmente chegou ao fim, em abril daquele ano, a 16ª Divisão, que estava “praticamente dizimada”, foi reconstituída com soldados reservistas e ficou baseada na capital, Manila, como uma tropa de defesa. Sua função era principalmente sufocar guerrilhas, mas, quando a guerra se agravou, foram enviados para a ilha Leyte, ao sul de Manila, para defender esse ponto estratégico.
Então, em 20 de outubro do mesmo ano, enfrentaram uma grande tropa de desembarque do exército americano, e no dia 26 estavam quase aniquilados. Um dos principais motivos dessa derrota foi que as tropas locais e o Quartel-General Imperial não chegaram a um consenso sobre o que seria melhor, defender-se da invasão do exército americano em Luzon ou em Leyte, o que fez com que as tropas fossem enviadas às pressas e entrassem na batalha sem o devido preparo.
A 16ª Divisão perdeu metade de seus homens no bombardeio naval e no enfrentamento à beira-mar. Depois recuou para o interior da ilha e tentou resistir, mas todas as rotas de abastecimento estavam bloqueadas, e as guerrilhas os atacavam pela retaguarda. A maior parte dos soldados sobreviventes, dispersos, acabou sucumbindo à fome ou à malária. A fome, em particular, foi tão terrível que há até boatos de canibalismo. Foi uma batalha trágica e sem chance de vitória. Dos mais de 18 mil soldados que formavam a 16ª divisão, restaram 580. A porcentagem de mortos ultrapassou os 96%. Realmente lutaram até a morte. Ou seja, o Regimento Fukuchiyama passou pela “quase aniquilação” duas vezes, no começo e no fim da guerra. Pode-se dizer que foi uma tropa sem sorte.
Quando o meu pai dizia que escapou à morte por um triz, creio que estava se referindo ao fato de não ter sido enviado para o front na Birmânia no fim da guerra, como um integrante da 53ª Divisão. Mas com certeza também pensava nos antigos companheiros da 16ª Divisão, que se tornaram cadáveres em Bataan e Leyte. Se o destino do meu pai fosse outro e ele tivesse sido enviado para as Filipinas com a sua antiga divisão, uma hipótese bastante possível, certamente teria perdido a vida em algum dos campos de batalha — se não em Bataan, então em Leyte, se não em Leyte, então em Bataan. E nesse caso eu também não existiria, é claro. Talvez eu deva dizer que foi por sorte, mas o fato de escapar com vida enquanto os antigos companheiros tombavam em um distante campo de batalha ao sul (os restos mortais de alguns deles devem estar abandonados às intempéries até hoje) sem dúvida deixou no meu pai uma grande dor e uma profunda sensação de dívida. Tendo isso em vista, compreendo ainda melhor por que ele passava tanto tempo, toda manhã, recitando os sutras de olhos fechados.
A propósito, o meu pai continuou dedicado aos haicais enquanto estudava na universidade de Quioto, e foi um membro muito ativo da Kyoto Hototogisu. Também participou da revista Kyokanoko. Lembro que os armários de casa eram cheios de edições antigas dessa revista.
O pós-Guerra e o meu nascimento
Depois de entrar para a universidade de Quioto, o meu pai voltou a ser recrutado, no dia 12 de junho de 1945. Era a terceira vez dele no serviço militar. Mas dessa vez ele não foi enviado nem para a 16ª Divisão nem para a 53ª. Ambas as divisões já haviam sido aniquiladas e não existiam mais. Dessa vez ele fez parte, como soldado de primeira classe, da unidade 143 do Exército do Distrito Central, que atuava dentro do país. Não está claro onde ela era baseada, mas devia ser relacionada às Tropas de Transporte, pois se chamava “unidade de
automóveis”. Porém, dois meses depois, no dia 15 de agosto, a guerra terminou, e em 28 de outubro ele foi formalmente desligado do serviço militar e retornou à universidade. E assim o meu pai sobreviveu à grande desgraça da guerra. Ele tinha 27 anos.
* * *
Eu nasci em janeiro de 1949. O meu pai havia passado no exame de bacharel em setembro de 1947 e entrado na pós-graduação, mas, como já tinha certa idade, estava casado e tinha um filho, acabou desistindo da carreira acadêmica e arranjando um emprego como professor de língua japonesa na escola Koyo Gakuin, para se manter. Não sei direito como foi que os meus pais se conheceram. Eles moravam em cidades diferentes, Quioto e Osaka, então é provável que tenham sido apresentados por algum conhecido em comum. A minha mãe teve um namorado com quem pretendia se casar (um professor de música), mas ele morreu na guerra. E a loja do pai dela (o meu avô) em Senba queimou completamente nos bombardeios do exército americano. Ela nunca se esqueceu da experiência de fugir correndo pela cidade de Osaka sob as rajadas de metralhadora dos caças de porta-aviões Grumman. A guerra mudou completamente a vida dela, assim como a do meu pai. Porém foi graças a isso — digamos — que hoje eu estou aqui.
E assim eu nasci, no bairro Fushimi, em Quioto. Mas nas minhas primeiras memórias nós já vivíamos em Shukugawa, na cidade de Nishinomiya, província de Hyogo. Depois, quando eu tinha doze anos, nós nos mudamos para a cidade de Ashiya. Portanto, apesar de ter nascido em Quioto, tenho a sensação de ser natural da área de Hanshin (que engloba Kobe e Osaka). Tanto o dialeto quanto o modo de pensar e de ver a vida são distintos entre Quioto, Osaka e Kobe, embora as três cidades fiquem na mesma região de Kansai. Nesse sentido, posso dizer que a minha sensibilidade foi forjada em um ambiente diferente do do meu pai, natural de Quioto, e também do da minha mãe, de Osaka.
* * *
A minha mãe, que ainda está viva e tem 96 anos, também foi professora de língua japonesa. Ela se formou no curso de língua japonesa da Escola Feminina Shoin e depois passou a lecionar na mesma escola (creio que para alunas de doze a dezesseis anos), mas deixou o emprego ao se casar. A propósito, lembro que quando a escritora Seiko Tanabe ganhou o prêmio Akutagawa, em 1964, a minha mãe viu a foto dela no jornal e comentou que a conhecia bem. Tanabe também estudou na Escola Shoin, então talvez elas tivessem algum contato.
Segundo a minha mãe, o meu pai levava uma vida muito desregrada quando jovem. O corpo dele ainda devia guardar a experiência pesada da guerra, e a frustração de ver a vida seguir numa direção oposta à que ele pretendia também devia ser difícil. Ele bebia muito e parece que às vezes batia nos alunos. Mas, conforme eu crescia, o temperamento e as atitudes dele também foram se abrandando. Às vezes ele ficava deprimido e mal-humorado, ou bebia demais (a minha mãe sempre reclamava disso), mas, como filho, não me lembro de episódios desagradáveis. Talvez os vários sentimentos que o habitavam tenham assentado pouco a pouco, permitindo-lhe certa tranquilidade.
Objetivamente, acho que ele foi um professor excelente. Fiquei muito surpreso ao ver a quantidade de antigos alunos que vieram oferecer suas condolências quando ele morreu. Devia ser muito benquisto. Vários dos alunos dele se tornaram médicos e, graças a eles, o meu pai foi tratado com muita atenção e gentileza durante a sua batalha contra o câncer.
Aliás, a minha mãe também parece ter sido uma ótima professora. Mesmo depois que eu nasci e ela se tornou dona de casa, suas antigas alunas (com quem tinha, na verdade, pouca diferença de idade) continuaram a visitá-la com frequência. Eu, por outro lado, não tenho muito talento para essa profissão.
Que lembranças guardo do meu pai durante a minha infância? Íamos muito ao cinema. Aos domingos a gente acordava, abria o jornal para ver o que estava passando nos cinemas próximos de casa (não sei como é hoje em dia, mas naquele tempo havia várias salas em Nishinomiya) e, se algo nos interessasse, íamos de bicicleta. Assistíamos quase sempre a filmes americanos, e quase sempre de faroeste ou de guerra. O meu pai não falava sobre o que viveu na guerra, mas não se incomodava em assistir a filmes sobre o assunto. Então conheço bem os filmes de guerra da década de 1950. Acho que devo ter visto quase todos os de John Ford. Mas, no caso de filmes como A rua da vergonha ou A nova saga do Clã Taira, de Mizoguchi Kenji, ou Lírio do lodo, de Shiro
Toyoda, os meus pais me deixavam em casa, dizendo que não eram próprios para crianças, e iam sozinhos. (Na época, eu não entendia bem o que esses filmes tinham de impróprio.)
Também íamos a muitos jogos de beisebol no estádio Koshien. O meu pai foi um fã fervoroso dos Hanshin Tigers por toda a vida. Quando perdiam, ficava num mau humor terrível. Talvez esse tenha sido um dos motivos pelos quais deixei de torcer por eles.
Mesmo trabalhando como professor, o meu pai manteve a paixão pelos haicais. Tinha sempre sobre a escrivaninha uma antiga coletânea de kigo* com encadernação de couro e, quando estava à toa, folheava-a com delicadeza. Talvez aquele volume fosse, para ele, como uma Bíblia para um cristão. O meu pai publicou antologias de poemas, mas agora não as encontro. Onde será que foram parar? Ele presidia um clube de haicais de seus alunos, orientando quem se interessasse pelo assunto e organizando confraternizações para compor poemas, algo que existe até hoje. Eu o acompanhei nesses encontros várias vezes quando era criança. Certa vez ele organizou uma dessas reuniões em um eremitério onde se acredita que o poeta Bashô tenha morado, na montanha do templo Ishiyamatera, em Shiga. Não sei por quê, mas até hoje me lembro vividamente da tarde daquele dia.
Uma conversa desajeitada com o meu pai, aos 90 anos
No entanto, o meu pai devia ter a esperança de que eu, como seu único filho, realizasse coisas que ele não pôde fazer em vida. Conforme eu crescia e formava a minha própria identidade, a dissonância entre nós dois foi ficando mais intensa e mais evidente. Nós dois tínhamos personalidade forte. Não estávamos dispostos a abrir mão, tão facilmente, de nós mesmos. Também éramos, para o bem ou o para mal, muito parecidos na incapacidade de expressar diretamente as nossas opiniões.
Pessoalmente, não quero me aprofundar nos aspectos concretos dessas desavenças entre pai e filho, então tocarei no assunto apenas por cima. Se entrar em detalhes, o resultado será longo demais e visceral demais. Resumindo, depois que eu me casei, ainda jovem, e comecei a trabalhar, nós nos afastamos muito. Aconteceram várias coisas, em especial depois que me tornei escritor, que deixaram a nossa relação ainda mais complicada, e por fim estávamos quase que completamente rompidos. Passamos mais de vinte anos sem nos vermos, falando-nos apenas quando havia uma necessidade incontornável.
Eu e o meu pai crescemos em épocas e ambientes diferentes, não pensávamos da mesma forma e não víamos o mundo da mesma forma. É óbvio. Se, em algum momento da vida, eu tivesse me dedicado a reconstruir a nossa relação por esse ponto de vista, talvez as coisas tivessem sido diferentes. Mas em vez de dedicar tempo e esforço para buscar novas maneiras de me relacionar com ele, preferi focar minhas forças em meus próprios planos. Eu ainda era jovem, tinha muitos planos, e objetivos muito claros. Tudo isso importava mais, para mim, do que lidar com questões familiares complexas. E eu também tinha, é claro, o meu pequeno lar para manter.
Só fui reencontrar o meu pai e conversar frente a frente com ele pouco antes da sua morte. Eu já me aproximava dos sessenta anos e ele já chegava aos noventa. Estava internado em um hospital em Nishijin, Quioto. Ele não foi um homem magro, mas o gravíssimo diabetes e o câncer que tomou o corpo dele o haviam deixado magérrimo. Parecia outra pessoa. Trocamos palavras desajeitadas e — por um curto período, nos últimos momentos de sua vida — tivemos uma espécie de reconciliação. Por mais diferente que fossem os nossos pensamentos e visões de mundo, algo agiu com muita força dentro de mim, algo como um laço que nos unia. Diante da figura macilenta do meu pai, não pude deixar de sentir isso.
Por exemplo, certo dia de verão nós dois fomos de bicicleta até a praia de Koroen para abandonar uma gata rajada. E depois essa gata nos ultrapassou com vantagem e ficou nos esperando em casa. Aconteça o que acontecer, compartilhamos essa experiência, maravilhosa e intrigante. Lembro claramente, ainda hoje, do som das ondas e do perfume do vento que soprava por entre as árvores, naquele dia na praia. O acúmulo infinito de pequenas lembranças como essa é o que compõe a pessoa que sou hoje.
A sensação de se tornar invisível
Desde a morte do meu pai, eu me encontrei com várias pessoas que o conheceram e conversei sobre ele, como uma forma de retraçar as minhas origens.
* * *
Não sei se um texto pessoal como este interessa aos leitores. Mas sou do tipo de pessoa que só consegue pensar na prática, usando as mãos e escrevendo (sempre fui péssimo em pensar de forma abstrata e conceitual), então precisei fazer isso. Retraçar as minhas memórias, olhar para o passado e transformar tudo em palavras visíveis sobre o papel, em um texto que pode ser lido em voz alta. E, conforme eu escrevia e relia estas palavras, fui sendo tomado pela estranha sensação de ficar invisível. Era algo tão forte que eu tinha a impressão de que, se erguesse as mãos diante dos olhos, conseguiria enxergar um pouco do que estava por trás delas.
Se o meu pai não tivesse sido dispensado do serviço militar e tivesse ido para a guerra nas Filipinas ou na Birmânia… Se o professor de música, antigo noivo da minha mãe, tivesse escapado da morte em algum campo de batalha… Pensar em tudo isso me causa uma sensação muito estranha. Nesses casos, eu não estaria aqui. E então, obviamente, não existiria a minha consciência, nem os livros que escrevi. Pensando assim, o próprio fato de que eu vivo como escritor começa a parecer uma ilusão, frágil e sem substância. O meu sentido como indivíduo vai ficando cada vez mais vago. Se eu conseguisse enxergar através da palma das minhas mãos, não me surpreenderia.
O gato que subiu no pinheiro
Tenho mais uma memória de infância sobre um gato. Já escrevi sobre isso em algum romance, como uma anedota, mas vou escrever de novo. Desta vez, como fato.
Nós tínhamos um pequeno filhote de gato branco. Não lembro bem como ele foi parar em casa, pois durante a minha infância muitos gatos apareciam e sumiam de lá. Mas lembro que era um filhote adorável, de pelagem bonita.
Certo fim de tarde, quando eu estava sentado na varanda, esse gatinho se pôs a escalar um pinheiro (no nosso jardim havia um pinheiro magnífico), bem diante dos meus olhos. Como se quisesse exibir a sua bravura e rapidez, subiu pelo tronco com uma agilidade espantosa e desapareceu entre os galhos, lá no alto. Fiquei assistindo, atento. Mas uma hora ele começou a miar agoniado, como quem pede socorro. Provavelmente havia subido até bem alto e agora não tinha coragem de descer. Os gatos sobem em árvores muito bem, mas descer não é o seu forte. Só que o filhote não sabia disso. Deve ter subido num ímpeto e depois, ao ver quão alto estava, ficou paralisado.
Eu me aproximei e olhei para a copa da árvore, mas não consegui enxergá-lo. Só ouvia os seus miados agudos. Chamei o meu pai, expliquei o que havia acontecido e perguntei como ajudar o filhote. Mas não havia nada que o meu pai pudesse fazer. Era alto demais para uma escada. O gatinho continuou a miar, desesperado, pedindo ajuda, e a noite foi caindo. Até que a escuridão engoliu todo o pinheiro.
Não sei o que aconteceu com aquele filhote. No dia seguinte, quando acordei, já não se ouviam os miados. Chamei várias vezes o nome dele em direção aos galhos, mas não houve resposta. Apenas silêncio.
Talvez o gatinho tivesse dado um jeito de descer durante a noite e ido embora (para onde?). Ou talvez não tivesse conseguido descer e tenha ficado lá, no meio dos galhos, exausto demais para miar, até definhar devagar e morrer. Imaginei isso muitas vezes, sentado na varanda e olhando para o pinheiro. O gatinho branco, morto e seco, ainda com as unhazinhas desesperadamente cravadas no galho.
Essa é mais uma lembrança marcante da minha infância, relacionada com gatos. Essa história deixou, na minha mente infantil, um ensinamento vívido: descer é muito mais difícil do que subir. Generalizando um pouco mais, seria o seguinte: os resultados engolem rapidamente as causas e as tornam impotentes. Em alguns casos, isso mata gatos. Em outros, pessoas.
* * *
Seja como for, o que eu queria mesmo dizer com este texto tão pessoal é um fato bastante óbvio:
Sou apenas o filho comum de um homem comum. Isso é absolutamente óbvio. Mas, quando resolvi arregaçar as mangas e realmente investigar esse fato, foi ficando cada vez mais claro que ele é, também, acidental. Vivemos a vida assim, olhando fatos que são fruto de mera causalidade, como se fossem a única realidade possível.
Em outras palavras, cada um de nós é apenas uma gota, anônima, entre incontáveis gotas de chuva que caem sobre a vastidão da terra. Gotas individuais, é verdade, mas perfeitamente substituíveis. No entanto, cada uma dessas gotas de chuva tem as suas próprias ideias. Cada uma tem a sua história e também a obrigação de levar adiante essa história. Não podemos nos esquecer disso. Mesmo que cada gota logo seja absorvida, perca o contorno individual e desapareça como parte de um coletivo maior. Não, o correto seria dizer: justamente porque ela irá desaparecer como parte de um coletivo maior.
* * *
Ainda hoje, às vezes me pego refletindo sobre o grande pinheiro do nosso jardim em Shukugawa. Penso no pequeno filhote, que talvez continue lá, transformado em ossos, agarrado ao galho como uma memória que não se apagou. Então penso na morte, e em como é difícil descer numa reta até o chão lá embaixo, tão distante que dá vertigem.
Matéria publicada na edição impressa #30 jan/fev.20 em janeiro de 2020.