Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Motim, não: massacre

Há 28 anos, memória das vítimas do Carandiru sofre com resistência do Estado em reconhecer sua responsabilidade

01out2020 | Edição #38 out.2020

Existe uma forma correta de lembrar um massacre? Existe algo a ser feito com as lembranças das vítimas, as histórias dos sobreviventes e o que ficou para os familiares? É possível falar em memória de algo que segue acontecendo? Eis algumas das perguntas que nos fazemos quando pensamos, 28 anos depois, no que significa escrever sobre o Massacre do Carandiru. Quase três décadas passadas, o Estado não assumiu a responsabilidade nem a atribuiu a ninguém; enquanto isso, passageiros da linha azul do metrô de São Paulo leem “Estação Carandiru” todos os dias e veem, pela janela, um parque onde antes era o complexo prisional. Será que algum passageiro se lembra daquele 2 de outubro de 1992?

A demolição do Carandiru e a construção do Parque da Juventude foi uma tentativa de apagar do espaço e da memória coletiva o fato de que ali pelo menos 111 pessoas foram mortas. O projeto de lei 999-2003, apresentado na Assembleia Legislativa, pedia a mudança do nome da estação para “Parque da Juventude”, para superar um passado violento associado ao nome do complexo penitenciário.
Atualmente, em um extremo do Parque da Juventude há o Museu Penitenciário Paulista; no outro, dentro de uma Escola Técnica (ETEC), o Espaço Memória Carandiru. Entre ambos, o parque, decorado com esculturas e monumentos que remetem à liberdade, à paz e à reflexão. Do Carandiru restam, na imensa área verde, apenas ruínas da muralha e de um pavilhão jamais concluído.

Recentemente, uma de nós levou uma turma de calouros de direito a uma visita ao Carandiru. No Espaço Memória Carandiru, a visita guiada foi conduzida a partir da ideia de “mudar a imagem” que as pessoas têm dali, substituindo-a por uma romantização: como os presos viviam, como se movimentavam, que instrumentos construíam a partir de restos de materiais, como era a rotina no “maior complexo penitenciário da América Latina”. Ficou claro que a narrativa oficial era seletiva.

O mesmo aconteceu no Museu Penitenciário Paulista, onde a menção ao 2 de outubro de 1992 se limita a uma pontual marcação — “motim no Pavilhão 9 com intensa repercussão nacional e internacional” — em um dos painéis que traçam a linha do tempo dos presídios do estado. Ao ser questionada sobre se o “motim” mencionado seria o Massacre do Carandiru, a guia disse: “Trabalho na Secretaria de Administração Penitenciária, não posso usar a palavra massacre”.

Há diversas correntes contemporâneas nos estudos da memória — tanto sua função individual quanto sua função coletiva, política, como significado público atribuído a determinado período histórico ou episódio considerado socialmente traumático.

A demolição do Carandiru foi uma tentativa de apagar da memória coletiva o massacre ocorrido ali

O Holocausto é reconhecido como marco inicial dos estudos da memória, a ser ressignificado publicamente. Desde então, a atribuição de responsabilidades por episódios de grandes violações de direitos é o primeiro passo para permitir a elaboração coletiva do trauma. Não só não se concluiu a responsabilização sobre o Massacre do Carandiru como, depois de mais de duas décadas de processo judicial, reforça-se que deve ser entendido como motim provocado pelos presos.

Memorialização

A partir dos estudos de memória surgiu o conceito de “memorialização”, sendo a atribuição de uma estrutura física de lembrança de determinado episódio como forma social de “prestar contas” a vítimas e sobreviventes, além de ter uma função educacional sobre a história daquele povo e daquele espaço. Assim, o museu ou memorial seria útil tanto para os indivíduos quanto para um reconhecimento simbólico e coletivo sobre como a sociedade escolheu se reportar sobre aquele episódio. É impossível pensar na Alemanha de hoje sem pensar em todos os espaços de memória construídos para lembrar e pedir perdão pelo Holocausto.

Mas esse processo está longe de ser fácil. Randi Korn, especialista em museus e diretor de uma organização internacional que avalia experiências de impacto social, relata que o maior desafio para a construção de um espaço de memória é a necessidade constante de consultar o público, em todas as fases do projeto — afinal, é grande a expectativa depositada em um espaço que carregará tantas lembranças. Há metodologias para esse processo de escuta de sobreviventes, familiares, funcionários e todos os que serão direta e indiretamente impactados pela construção do espaço. É um processo longo, cuidadoso e caro.

O que nos diz o Parque da Juventude sobre a forma como podemos ver o Massacre do Carandiru? Em primeiro lugar, devemos reconhecer que a construção do Parque, ou mesmo do Espaço do Museu, jamais foi pensada a partir dessa expectativa de “memorialização”. Não houve debate público sobre o que deveria ser feito ali, nem consulta aos sobreviventes sobre de que forma sentiriam que suas memórias individuais seriam respeitadas. Para isso, o Estado deve antes reconhecer que ali ocorreu um massacre.

As construções coletivas sobre o 2 de outubro de 1992 têm sido feitas de forma independente dos significados oficiais, principalmente pelas manifestações de familiares de presos que pedem respostas e justiça. Nos últimos anos, essas manifestações têm sido acompanhadas não só pelas pessoas que ainda se lembram do Carandiru na pele, como também pelos familiares dos presos de hoje, dos novos massacres diários a que o Estado submete milhares de pessoas privadas indignamente da liberdade.

Segundo a historiadora Soraia Ansara, a memória recupera, para os oprimidos, os caminhos percorridos até o estado atual, os quais ecoarão no futuro, pois fazem parte de um processo coletivo de formação de consciência política. Aprender sobre o passado entrega ferramentas de mobilização social para aqueles que, mesmo sem terem testemunhado o episódio traumático, conseguem abrir novas portas de questionamento e cobrança social.

A memorialização do Massacre do Carandiru seria um passo importante para ressignificar as experiências dos massacres diários que acontecem nas unidades prisionais por todo o Brasil. Com esse reconhecimento oficial, as atrocidades do cotidiano se interligam em um fio condutor ao mesmo tempo dolorido e potente. Sem criar a falsa expectativa de que a memorialização seja capaz de impedir que novos massacres ocorram, a memorialização do Carandiru pode ter uma função pedagógica que envolve indignação e questionamento social.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Bruna Angotti

É professora da Universidade Mackenzie.

Ana Luiza Bandeira

Advogada e antropóloga, coordena o Innocence Project Brasil.

Matéria publicada na edição impressa #38 out.2020 em setembro de 2020.