Laut,

Espectros autoritários

A ditadura é um desses fenômenos que nunca desaparecem de todo, mas permanecem como fantasmas que continuam assombrando o presente

01mar2024 • Atualizado em: 01ago2024 | Edição #79
Ilustração de Veridiana Scarpelli

Rememorar um fenômeno é também recriá-lo: elaboram-se interpretações que aliam o passado ao presente e, com isso, esboçam possibilidades de futuro. O golpe de 1964 é da categoria de eventos que nunca passam completamente, assombrando mesmo depois de sessenta anos. Ele acopla diferentes temporalidades e, apesar dos importantes esforços para superá-lo, seu espectro perdura como uma ameaça ao projeto democrático.

O golpe interrompeu a história brasileira, inscrevendo o autoritarismo, a violação de direitos e a repressão na sociedade e nas instituições. Essa experiência autoritária não foi inédita -— nossa história está marcada por elas. Esse golpe e a ditadura, porém, foram hábeis em falsear a história por meio do legalismo. Os juristas do golpe produziram a certidão de nascimento no Ato Institucional nº 1 (AI-1), fundamentando juridicamente a supressão da ordem democrática como uma “revolução”. Com isso, poderiam cercear os poderes, tendo a autonomeada “revolução” a função de “drenar o bolsão comunista”. A metáfora infecta foi a tônica da construção de um mundo em que o descumprimento constitucional era apresentado como seu oposto.

Depois do AI-1, criado para ser único, houve mais dezesseis, tornando permanente o que se apresentava como temporário. A gestão das temporalidades é marca do golpe. A insistência em arquitetar algo novo, com o objetivo de se afastar de potenciais pressões políticas, foi uma tentativa de criar uma história forjada artificialmente, em que tudo o que escapa da invenção deve ser destruído. Daí que a ditadura tenha tido repressões políticas, artísticas e morais. As ditaduras não convivem com a diversidade, sobretudo aquelas que mostram o feio e o imperfeito. Nessa toada, a invocação do arremedo de legalidade foi instrumento de acobertamento das ações mais ilegais e imorais.

A ditadura teve ciclos distintos, mas as variáveis comuns eram a mudança casuística das regras — leia-se, cada vez que o regime perdia na esfera política —, o cerceamento institucional, a falta de democracia, a perseguição aos opositores e a criação de mitologias exaltando o regime. Essas variáveis foram — e são — convenientemente utilizadas para fundamentar os delírios autoritários que precisavam que o passado fosse exaltado, o presente fosse visto como desprovido de alternativas e o futuro, uma mera reprodução canibalizada desse passado.

Naqueles anos, erigiu-se um arcabouço que possibilitou a perseguição e o controle das instituições. O poder foi centralizado; o Congresso estrangulado, especialmente com cassações; eleições foram suspensas; polícias ficaram ainda mais repressivas; o Supremo Tribunal Federal (STF) foi cerceado. Os direitos foram reduzidos a pó, com a disseminação de perseguições, censuras, prisões, desaparecimentos, sequestros, estupros e o genocídio de povos indígenas. Esses foram alguns dos crimes de Estado, ainda hoje não devidamente enfrentados.

Fantasmas

Apesar da importância da Constituinte e da participação social, a transição à democracia foi limitada ao deixar de confrontar muito das heranças ditatoriais, mantendo-as de forma latente. Nos debates da transição esse aparato era chamado de entulho autoritário, e Conrado Hübner Mendes, de modo perspicaz, aponta em artigo publicado na Quatro Cinco Um em 2020 que isso se naturalizou e se adaptou, configurando um estoque autoritário.

Os não enfrentamentos foram vários. A começar pela ausência de responsabilização dos crimes dos agentes estatais, muitos dos quais ainda foram homenageados ao se nomear espaços públicos. Nada mais simbólico do que cidades incrustadas pela brutalidade oficial: a concessão de louvores aos que destruíram vidas repete incessantemente a violência. Enquanto isso, a memória dos que sofreram foi ignorada por muito tempo. As comissões de anistia, de desaparecidos políticos e da verdade ocorreram décadas depois do fim da ditadura militar.

A violência ditatorial perdura, em nova configuração, impregnando-se nas minúcias da vida

Da falta de punições e das políticas de amnésia resulta que as forças de segurança do país não tiveram alterações substanciais, estando hoje entre as que mais matam. A ADPF 635 (ação que levou o STF a limitar as ações policiais nas favelas) objetiva limites civilizacionais sobre o poder letal das polícias, e, ainda assim, foi vista como excessiva por alguns setores. A relação civil-militar se mantém pautada em ameaças militares sempre que seus interesses são ameaçados. E os direitos humanos têm a aplicação limitada de acordo com as condições sociais e econômicas dos indivíduos, sendo na prática negados a grande parcela da população. Assim, a ditadura permanece como fantasma que se repete incessantemente, tornando-se, na repetição, outra coisa. Adapta-se às circunstâncias, mistura a retórica mofada com novos termos de ordem, atualiza sua violência com o uso de novas tecnologias.

Sombras

O golpe formou um limiar que ainda não foi fechado, cuja sombra mais visível é o bolsonarismo. A violência perdura em forma de espectro que afeta para além da política, impregnando-se nas minúcias da vida. A igualdade se torna uma ameaça em uma sociedade que se pauta pela distinção. O projeto constitucional de cidadania é incompatível com o autoritarismo. Nada ameaça mais do que todos terem os mesmos direitos.

Com a pretensão de ser a versão tropical de movimentos autoritários internacionais, o bolsonarismo é a reconfiguração espectral da ditadura. Seus elementos estão presentes, mas de maneira reconfigurada: militarismo, abuso da força, ataques às instituições e violações de direitos são o seu caldo constitutivo. É um movimento que não se resume aos eleitores do ex-presidente, unindo grupos com bases e convicções distintas. Reúne nacionalistas e neoliberais em uma mesma massa, na qual o uso mítico do passado é um dos elementos aglutinadores. Os problemas atuais seriam uma deturpação da ordem, e a violência seria necessária para o retorno a ela, na qual “cada um sabe seu lugar”.

Os ecos entre o golpe e o bolsonarismo — esse passado-presente — demandam um rompimento que só pode ser feito pelo compromisso radical com a memória dos que sofreram a violência do Estado. Tal compromisso não se manifesta pelo mero compilado de fatos, e sim em um enfrentamento genuíno dos autoritarismos naturalizados. Os fantasmas só serão superados no confronto com a violência pretérita, tornando possível que o futuro não seja uma mera reconfiguração do passado.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Heloisa Fernandes Câmara

Professora de ciência política na UFPR, é pesquisadora em direitos humanos e ditadura militar brasileira.

Matéria publicada na edição impressa #79 em março de 2024.