Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Entre cartomantes e alienistas

Como a circulação de conteúdo pseudocientífico no YouTube prejudica o combate à pandemia da Covid-19

12jun2020

Ao pedir para que os moradores da Ilha de Inhaca, próxima a Maputo, capital de Moçambique, identificassem um problema ambiental local, uma equipe da Organização das Nações Unidas (ONU) encarregada de uma missão de “educação ambiental" ouviu sobre a invasão de tinguluve, os porcos do mato. Na língua local, o chindindinhe, essa palavra também serve para falar de “espíritos dos falecidos que adoeceram depois de deixar de viver”. O abatimento dos tinguluve, solução que parecia evidente para a equipe internacional, foi extremamente mal recebida pelos locais, que não viam sentido algum em tentar matar espíritos. “Ninguém mais quis falar ou escutar fosse o que fosse”, narra Mia Couto. 

O diálogo acima é relatado pelo escritor moçambicano no seu texto “Línguas que não sabemos que sabíamos”. Ele conta que as falas da equipe da ONU, feitas em inglês e traduzidas pelo próprio Mia Couto para português, muitas vezes não encontravam correspondência exata no chidindinhe. A palavra “cientista”, por exemplo, não existe na língua local e acaba sendo traduzida como inguetlha, que, segundo o autor, quer dizer feiticeiro. Assim como na Ilha de Inhaca, na pandemia que vivemos, a falta de compreensão comum do problema e das formas de combatê-lo tem consequências concretas e tristes. No caso atual, a irreparável perda de vidas.

“Coronavírus, esse novo [vírus] que apareceu, não é problema nenhum. Sua imunidade é que realmente determina se você vai ser infectado ou não. Se as suas células do sistema de defesa estão funcionando bem, você pode ficar deambulando nos shoppings, em qualquer lugar, você pode abraçar aquele que está com esse vírus, não importa, gente, não tem problema nenhum”. Isso é o que diz o médico Jea Myung Yoo, no seu vídeo “Dicas de como evitar CORONAVÍRUS”, que já foi visto mais de 750 mil vezes. 

Infelizmente este é apenas um dos muitos vídeos em que médicos propagam informações falsas ou imprecisas no YouTube. Identificamos que uma rede de vídeos com esse perfil soma mais 35 milhões de visualizações. São falas que listam dicas de como aumentar a sua imunidade através do consumo de determinados alimentos e vitaminas, assim como a prática de hábitos saudáveis. No entanto, são raras ou inexistentes menções a fontes oficiais ou recomendações das autoridades sanitárias. Além disso, a estética e apresentação do conteúdo dão a entender que o consumo de produtos “saudáveis” indicados pelo autor do vídeo seriam suficientes para combater a Covid-19, o que pode induzir as pessoas à confusão. Ações como lavar as mãos, manter distanciamento social ou evitar tocar boca, nariz e olhos, oficialmente indicadas pela Organização Mundial de Saúde, raramente aparecem como recomendações ou são frontalmente desacreditadas.

Os vídeos nos lembram de dois contos de Machado de Assis. Primeiro, as promessas de “A cartomante”, aqui travestidas de coaching médico e receitas caseiras. O consumo de suplementos vitamínicos pode trazer algum conforto psicológico, e aqueles que nunca enfrentarem os males da Covid-19 podem até crer que foram protegidos por eles. Contudo, a crendice está longe de encontrar embasamento científico ou nos desviar de um fim trágico. O que nos traz ao segundo conto, de “O alienista”, cujas teorias cientificistas delirantes são usadas para fomentar revoltas na cidade.

Como em toda boa cartomante, a receita da amarração certa é atrelada às especiarias que só ela tem. Parte significativa dos vídeos que identificamos aproveita a visibilidade dos seus conteúdos para vender produtos. Sim, é um mercado médico (ou pseudomédico) que ganha força no contexto de pandemia. Em geral, eles convidam seus espectadores a comprarem complexos vitamínicos, cursos ou publicações. Muitas vezes essa venda de produtos é feita a partir de links colocados na descrição dos vídeos e aparece em meio a outros conteúdos oferecidos gratuitamente. Também são frequentes as propostas de dietas para emagrecimento, associadas pelos vídeos a melhorias na imunidade.

Mais impressionante é constatar que diversos médicos autores desses vídeos efetivamente estão registrados em conselhos regionais de medicina. O dr. Jean Myung Yoo, por exemplo, consta nos registros do Cremesp sob o número 54123.

No final dos anos 1960 na França, boatos sobre o sequestro de meninas jovens em provadores de lojas de propriedade de judeus se espalharam por todo o país e ficaram conhecidos como “rumores de Orleans”. Nunca houve, no entanto, qualquer dado concreto que comprovasse o sequestro das jovens. Como os rumores de Orleans, essas informações falsas ou deturpadas vão se espalhando, sem base concreta, até atingir uma quantidade enorme de pessoas. 

No livro A vida pela frente (Todavia), do escritor Romain Gary (sob o pseudônimo de Émile Ajar), o pequeno Momo usa diversas vezes essa expressão para se referir a histórias preconceituosas contra judeus e árabes que circulavam na Paris dos anos 1970. Ele, uma criança de origem árabe, vivia na casa de uma senhora judia sobrevivente de Auschwitz, junto com outras crianças de diversas origens. Nessa convivência intensa e diversa, Momo conta, por exemplo, quando foi levado ao médico pela senhora que o criava para averiguar se ele tinha sífilis pelo fato de ser árabe. O médico, então, reage energicamente contra o pedido da senhora, explicando que essa relação entre a origem árabe e a sífilis não passava de um “rumor de Orleans”. Quem sabe daqui a alguns anos a expressão “rumores de WhatsApp” estará em voga.

Ciência Contaminada

A rede de vídeos médicos é uma das quatro identificadas no recém-publicado relatório “Ciência Contaminada”, em que analisamos mais de 11 mil vídeos sobre coronavírus no YouTube. Esta mídia é a segunda maior rede social digital do mundo e tem uma audiência estimada de 120 milhões de usuários no Brasil. Ela detém 15% do share dos vídeos assistidos no país, atrás apenas da TV Globo (18%), segundo uma pesquisa da Video Viewer. Boa parte da concentração de atenção na plataforma ocorreu no intervalo entre 2014 e 2018 e tende a crescer ainda mais.

Quando o Facebook tirou do ar centenas de páginas brasileiras relacionadas à divulgação de conteúdo falso, em 2018, o ambiente menos controlado do YouTube se tornou  opção atraente, oferecendo ambiente fértil para migração deste tipo de material. Além disso, o YouTube tem sido identificado como destino preferencial dos links que circulam no WhatsApp, caracterizando o chamado “YouTube-WhatsApp pipeline”.

Desnecessário dizer que esse plano menos controlado do YouTube – e de interações entre diferentes redes – se tornou um terreno fértil e efervescente para conteúdo pseudocientífico. Reconhecemos nesses ambientes variações de “alienistas” que acusam conspiradores da política em todo canto, e “cartomantes” vendendo alento e soluções fajutas para os males da humanidade.

Entre os discursos analisados, identificamos referências a uma conspiração global para destruir o modo de vida cristão. Também vimos discussões sobre armas biológicas sendo criadas e disseminadas em escala digna de um filme do hollywoodiano estrelado por Vin Diesel ou Tom Cruise. Até mesmo experiências científicas que buscavam provar empiricamente que a terra é plana. Curiosamente, mesmo as teorias mais delirantes se alinhavam a interesses econômicos ou políticos, e sempre tinham como alvo de seus ataques os produtores de conhecimento científico.

Compreender o que se passa neste ambiente passou, portanto, a ser crucial para entender como se formam os discursos sobre a pandemia. Além da rede de médicos, também identificamos no relatório outras três redes importantes quando se trata de vídeos sobre o coronavírus. São elas: uma rede de teorias da conspiração, uma rede de discurso e teorias religiosos e uma rede de conteúdo informativo sobre a doença.

O discurso da desinformação busca alienar sua audiência à ciência, mas, quando conveniente, vale-se de uma ciência distorcida para corroborar suas teorias. O cientificismo seletivo da fake news normalmente escolhe a dedo e descontextualiza pontos específicos de notas técnicas, comunicados e artigos do sistema de peritos. Usam de uma retórica que é recheada de recursos falaciosos que induzem a audiência a aceitar pontualmente a autoridade do sistema de peritos como elemento de validação das teorias conspiratórias.

O sistema de peritos é aqui entendido como conjunto de instituições responsáveis pela produção, validação e difusão de conhecimento na sociedade. É composto de universidades, agências especializadas, institutos de pesquisa, mídia, entre outros. Essas organizações não são donas da verdade, mas assumem metodologias e padrões de conduta que nos asseguram os melhores meios de obtermos evidências e produzirmos leituras da realidade. No mesmo sentido, desenvolvem processos, mecanismos de verificação e mesmo responsabilização que tornam suas informações verificáveis e, portanto, mais fiáveis.

A desinformação no campo da saúde pode ter efeitos nefastos, interferindo diretamente nas políticas de saúde pública, a exemplo da crescente rejeição às vacinas e sua relação com o retorno de doenças antes erradicadas, como catapora ou sarampo. No caso da Covid-19, o dano torna-se ainda maior dado que não temos medidas farmacológicas capazes de curar a doença, ou mesmo minimizar significativamente os seus sintomas.

Assim sendo, a única medida que se mostra eficaz é o isolamento social, uma ação eminentemente comportamental. Ao menosprezar os efeitos da doença, debilita-se justamente o único mecanismo eficaz de combate à pandemia, minando o comportamento coordenado da população em prol do isolamento. 

Em tempos em que é difícil achar bases comuns para compreender a realidade, a pandemia virou mais um campo de batalha política. Assim, nos vemos, muitas vezes, tentando (re)construir pontes entre pessoas que não confiam nas mesmas instituições, não leem as mesmas notícias e não partilham posições políticas. Quando perdemos o terreno comum, estamos nos aproximando da incompreensão completa.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Nina Santos

É diretora do Aláfia Lab e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital.

Caio C. Vieira Machado

Pesquisador do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT). Mestre por Oxford e pela Sorbonne, bacharel em direito pela USP.

João Guilherme Santos

Pesquisador e coordenador do laboratório de dados do INCT.DD. Doutor pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Daniel A. Dourado

Pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário, professor universitário, médico e advogado sanitarista.