Jornalismo,
No lugar errado
A prática do pozole — dissolver corpos em ácido — se dissemina pelo México e é usada como pretexto pelo governo para encerrar casos sem solução
23nov2018 | Edição #15 set.2018“Qual é a sua função específica dentro do grupo criminoso?” “Minha função específica é fazer o trabalho do pozole, que consiste no seguinte: os membros das diferentes células da organização me trazem cadáveres para que sejam dissolvidos em uma solução à base de soda cáustica e água.”
A declaração é de Santiago Meza López, casado, 45 anos, pai de família, pedreiro aposentado, nascido em Sinaloa — berço do cartel de mesmo nome — e com domicílio na Baja California, onde trabalhava para Teodoro García Pimentel, “El Teo”, capo do cartel que dominava a cidade de Tijuana, na fronteira dos Estados Unidos.
“Aprendi a fazer pozole com uma perna de vaca. Pus em uma bacia, joguei um líquido em cima e ela se desfez; os corpos que me davam para pozolear já chegavam mortos, eu os enfiava nos tambores e enchia com quarenta, cinquenta quilos de um pó que comprava numa casa de ferragens por 35 pesos o quilo”, continuou o homem cujo codinome no crime é “El Pozolero”, isto é, aquele que prepara o popular cozido mexicano de carne e milho. Dentro do cartel, ele se dedicava a dissolver cadáveres de inimigos com soda cáustica. Assim, desfez trezentas pessoas.
Seu ofício de desaparecedor de corpos — volta e meia recebidos das mãos de policiais a serviço do cartel — mostra o que a filósofa alemã Hannah Arendt batizou de banalidade do mal em relação aos nazistas e ao trabalho burocratizado da morte nos campos de concentração: quando matar deixa de ser um assunto de psicopatas solitários e se torna um emprego burocrático em cadeia, no qual cada membro tem uma função. Como se se tratasse de um maquiador.
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A notícia, difícil de digerir para os mexicanos, devastou as famílias com parentes desaparecidos em Tijuana. Quando conseguiram assimilá-la e se levantaram da cama, dedicaram suas forças a localizar as chácaras onde aquele homem havia trabalhado. Buscavam o que havia sobrado de seus familiares.
A apresentação de Meza López para a imprensa, em 2009, e a evidência de que ele foi se aperfeiçoando tecnicamente para tornar mais eficiente o desaparecimento dos corpos foi um dos golpes de horror mais difíceis de assimilar no início do sexênio da chamada Guerra contra as Drogas.
“El Pozolero” revelava que a palavra de ordem entre os grupos armados já não era apenas matar, mas apagar até o último átomo do suposto adversário, para que não sobrasse nada.
Partículas
Em dezembro de 2011, eu soube o significado dessas palavras quando o sr. Fernando Ocegueda — um pai que, buscando o filho desaparecido, fundou uma organização e encontrou a chácara onde Meza havia trabalhado — me mostrou uma imagem dos seus achados. Era uma xícara de café em cujo fundo havia fragmentos de alguma coisa do tamanho de dentes, ou daquilo que sobra depois de cortar a unha. Não eram nem pedaços. Seriam partículas?
‘El Pozolero’ revelou que a palavra de ordem já não é apenas matar, mas apagar até o último átomo do suposto adversário, para que não sobre nada
Naquela e em outras noites tive insônia, tive pesadelos acordada. Descobri depois que Meza López não era o único de seu tipo e que cada célula de cada cartel tem o seu próprio “cozinheiro”, com sua própria “receita”: o método de calcinação, dissolução, incineração varia de região para região, se aperfeiçoa com diferentes produtos químicos e continua a se expandir. E que sempre, na trama da morte, aparece um policial ou um político.
Nos doze anos de estratégia de guerra militarizada lançada pelo presidente Felipe Calderón e continuada por Enrique Peña Nieto, tem sido comum passar temporadas sem dormir até digerir — ou esquecer — as notícias mais inimagináveis. De tão horríveis.
A começar pela massiva cifra de pessoas desaparecidas: 37.435 desde dezembro de 2006. Neste ano, já se somaram à lista 634 denúncias.
Antes disso, eu me considerava uma repórter normal, que cobria manifestações de rua, casos de desnutrição ou desastres naturais, mas nestes dois sexênios que dediquei a cobrir direitos humanos e as vítimas da violência me converti em algo como uma repórter do horror. Muitas vezes, uma repórter de valas comuns.
Coube a mim ver a transformação de famílias com parentes desaparecidos que se chocaram com os labirintos sem saída da burocracia e fizeram denúncias inúteis em procuradorias inúteis, que haviam percorrido necrotérios, hospitais, prisões e buscado seus entes queridos em terrenos baldios, ou através de videntes, e que, desesperadas, começaram a se capacitar — primeiro como advogadas, depois como formuladoras de leis e políticas públicas, que se tornaram defensoras de direitos humanos e que mais tarde já eram peritas forenses que cavam montes com as unhas à procura de corpos. E sempre encontram.
Isso não tem nada a ver com o México folclórico, onde festejamos o Dia dos Mortos e convidados a comer e beber os defuntos que vêm nos visitar nessas noites. Essas mortes sem morto, nas quais não há corpo, nas quais sempre fica a tortura da dúvida sobre se o ausente está vivo e sofrendo, nunca poderão ser celebradas. Nem sequer assimiladas.
Os achados de enterros ilegais são tantos que já deixaram de ser notícia. Em 2013, a UNAM teve que inaugurar o curso de ciências forenses para responder à epidemia. A sobrecarga de trabalho de equipes antropológicas forenses vindas do exterior — peruanas, argentinas, guatemaltecas — cedeu lugar à criação de dezenas de grupos locais.
Geografia da dor
Em 2016, presenciei um congresso que poderia ser classificado de surrealista se não tivesse acontecido no México. Os palestrantes eram representantes de coletivos de famílias de desaparecidos, vindas de pontos distintos da geografia da dor, que mostravam suas técnicas na busca dos corpos: uns usavam drones para rastrear territórios proibidos, outros se especializaram em entrevista de campo com cuidadores de cabras, outros inovaram nas ferramentas para furar a terra e desenvolveram o olfato e a vista para encontrar corpos escondidos debaixo da terra.
Não à toa, batizaram-se com nomes como “Rastreadoras”, “Sabuesos” ou “Cascaveles”. Levavam todo um instrumental ad hoc para fuçar debaixo da terra. O encontro teve uma fase prática, no estado litorâneo de Veracruz, onde os assistentes tinham que demonstrar o que aprendiam. Naquela semana — é claro, e por desgraça — encontraram corpos.
A aparição pública de “El Pozolero” em 2009 deu às autoridades o pretexto perfeito para fechar as jamais investigadas denúncias de desaparecimentos. A Procuradoria Geral da República informou aos familiares buscadores de Tijuana que o efeito da soda cáustica destruiu a informação genética contida nos fragmentos achados nos locais de trabalho de Meza López. Demorou cinco anos para informá-los.
Desde que me dediquei a cobrir direitos humanos, me converti em algo como uma repórter do horror. Uma repórter de valas comuns
Naquele ano de 2014, uma funcionária rabiscou na minha frente um mapa em um guardanapo e me contou o que considerava um segredo de Estado: em doze estados do País, não encontraremos desaparecidos — e fez uma pausa: já foram calcinados ou submetidos ao ácido. Mas essa teoria tem seus buracos.
O governo quis usar essa macabra explicação para encerrar o caso de desaparecimento, em 2014, dos 43 estudantes da Escuela Normal Rural de Ayotzinapa, e exibiu um osso calcinado, supostamente achado na beira de um rio, que havia sido queimado em uma lixeira onde supostamente todos os jovens haviam sido queimados.
Pouco a pouco, descobriu-se que essa “verdade” confessada pelos supostos assassinos tinha sido obtida sob tortura. Que a pira fúnebre em que foram queimados era um fogo de proporções impossíveis de manipular ao ar livre, e que o mato ao redor denunciava a mentira. E também que o osso da prova havia sido plantado por funcionários do governo.
Mesmo assim, no México a moda continua a mesma: os casos de desaparecimentos que se tornaram virais nas redes se resolvem com confissões de matadores que dizem que confundiram as vítimas com inimigos, que receberam ordens de dar fim aos corpos e tinham o material (toneladas de madeira, pneus velhos ou galões de combustível) pronto para usar. Os expedientes parecem copiados de um mesmo roteiro.
Em outros casos, como na descoberta de que uma cadeia no estado de Coahuila, no norte do país, era usada pelos presos para fazer desaparecer inimigos em escala industrial, ou como a incineração de trezentos habitantes de uma região como vingança por uma traição — massacres dos quais os meios de comunicação não ficaram sabendo em razão do controle da população exercido pelo crime —, o governo sempre culpa Los Zetas. Mas a narrativa sempre minimiza que esse cartel era protegido pelo governador e seus funcionários, como ficou evidente nos julgamentos que vêm sendo feitos desses grupos em tribunais do Texas.
O episódio mais recente dessa trama de terror foi o desaparecimento, em março, de três estudantes de cinema de Guadalajara (Salomón Aceves, Marco García e Daniel Díaz).
Segundo o governo, foram dissolvidos em ácido. A evidência foram as confissões dos jovens apresentados como assassinos, sem fornecer provas genéticas do que diziam. As autoridades explicaram que os futuros cineastas cometeram o erro de gravar um vídeo em uma casa que havia sido propriedade de um rival do cartel Jalisco Nueva Generación, que deixou integrantes de tocaia, à espera de que voltasse, para castigá-lo.
Como sempre, a explicação oficial é a mesma: os estudantes estavam no lugar errado, na hora errada, como se a tragédia fosse produto de sua maldita sorte, como se o Estado não tivesse responsabilidade nenhuma. Nessa lógica, num país onde “El Pozolero” fez escola e trabalha em parceria com funcionários do governo, qualquer lugar é o lugar errado. [Tradução de Paulo Werneck]
Matéria publicada na edição impressa #15 set.2018 em setembro de 2018.