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Narrando a vida

Nobel de literatura 2022, Annie Ernaux examina e reelabora recordações pessoais

23nov2022 | Edição #63

Annie Ernaux nasceu em 1940, em Lillebonne, uma pequena cidade no interior da França, em uma família de classe operária. Seus pais tinham uma mercearia que também funcionava como café, em cima da qual os três moravam. Sabemos de sua origem pela leitura de O lugar. O ambiente nem sempre era calmo, e o dia em que o pai agrediu fisicamente a mãe de Ernaux ficou marcado na memória e nas páginas de A vergonha. Enquanto estava na faculdade, nos anos 70, fez um aborto clandestino, narrado em O acontecimento, escrito 25 anos depois do fato. Aos cinquenta, teve um caso com um jovem trinta anos mais novo. O desejo, a vulnerabilidade e os desconfortos do relacionamento afetivo são examinados em O jovem.

Aos 82 anos, Ernaux publicou 24 livros desde sua estreia, em 1974. Suas obras ora são classificadas como ficção, ora como não ficção pelo estilo que adota, um misto de relato e ensaio comumente caracterizado como autoficção, rótulo que a autora recusa pelos dois polos do termo. “Ao declarar que não inventa nada ao escrever, ela abdica do ficcional para sua escrita, ainda que o trabalho de linguagem a torne literária; ao admitir a instabilidade do ‘eu’ que narra, recusando-lhe uma posição fixa, ela escapa ao elemento meramente autobiográfico”, escreve Natalia Timerman na resenha de O lugar na Quatro Cinco Um.

Os cinco livros da autora publicados no Brasil entre 2021 e 2022 pela editora Fósforo dão conta de traduzir pelo que Annie Ernaux ficou conhecida e foi conclamada. Além do Formentor (Espanha), Marguerite Yourcenar (França) e Strega (Itália), este ano venceu o Nobel de literatura. Na premiação, a Academia Sueca arrematou: “Em sua escrita, Ernaux, consistentemente e por ângulos diferentes, examina uma vida marcada por fortes desigualdades em relação a gênero, linguagem e classe”.

É também disso que trata a mesa Diamante Rubro, da qual participam Ernaux e a escritora gaúcha Veronica Stigger. As autoras ressignificam a ideia de narrrar os acontecimentos, abraçando a complexidade de relatar fatos passados e pessoais e a força da escrita — afinal, optam por ela. 

Ao contar a história de seu pai, Annie Ernaux escapa ao rótulo da autoficção e enuncia contradições da linguagem

E para quê? Como escreve Ernaux em O acontecimento: “Quero mergulhar mais uma vez nesse período da minha vida, saber o que se encontra ali. Essa exploração vai se inscrever na trama de um relato, o único capaz de recuperar um acontecimento que era apenas tempo dentro e fora de mim”. E mais, em O jovem: “Se não escrevo as coisas, elas não encontram seu termo. São apenas vividas.”

Matéria publicada na edição impressa #63 em outubro de 2022.