Direitos Humanos,
Silenciar não faz sumir
O quadrinista Art Spiegelman se junta a Margaret Atwood e Toni Morrison na lista de autores banidos das escolas norte-americanas
18abr2022 | Edição #57Nos Estados Unidos, crianças e adolescentes têm cada vez menos contato com discussões sobre raça, gênero e sexualidade. Com uma série de leis que transitam em 39 dos cinquenta estados norte-americanos e excluem do currículo temas considerados “inapropriados”, a polarização política extrapola as campanhas eleitorais e adentra com preocupação o ambiente escolar. Sob a justificativa de que as famílias devem escolher como tratar certos assuntos com os filhos, ataques conservadores têm sido direcionados a bibliotecários, professores e educadores que defendem a importância de tratar temas identitários na educação básica.
Profissionais e ativistas não são os únicos a serem impactados: a lista de autores banidos das escolas estadunidenses é ilustre e cada vez mais extensa. Toni Morrison e as cicatrizes da escravidão na desigualdade racial, a opressão de gênero distópica de Margaret Atwood e as relações familiares atravessadas pela sexualidade de Alison Bechdel são alguns dos exemplos de escritores cujas obras têm conteúdos considerados faíscas capazes de inflamar nos jovens supostas ideologias “radicais”. Art Spiegelman e os seus gatos e ratos que contam a história de um sobrevivente do campo Auschwitz também se tornaram alvos recentes das proibições.
Maus, de Art Spiegelman, conta a história de um sobrevivente do campo Auschwitz e se tornou alvo recente de proibições nas escolas norte-americanas
Com o pretexto de apresentar a adolescentes de doze e treze anos cenas de nudez e uma linguagem obscena, Maus não é um livro bem-vindo nas salas de aula do condado de McMinn, no Tennessee. O trabalho de Spiegelman, publicado de forma seriada na revista independente raw Magazine e depois reunido em volume único em 1991 pela editora americana Pantheon, registra o processo do autor em se aprofundar em um pedaço íntimo de uma história pública: a trajetória de sua família na ocupação nazista da Polônia durante a Segunda Guerra Mundial.
Memória coletiva
A narrativa acompanha uma série de entrevistas feitas ao longo dos anos 70 com Vladek, pai de Spiegelman, sobre o período de guerra que vivenciou na Polônia entre 1933 e 1944. Em visitas alternadas à residência onde cresceu, no bairro nova-iorquino do Queens, e à casa de campo em Catskills, a duzentos quilômetros dali, o quadrinista americano enfrenta e registra os conflitos de entranhar-se em uma experiência traumática que moldou sua vida e também faz parte de uma memória coletiva.
O racismo estrutural ou a violência de gênero precisam ser contados como fábulas para serem aceitos?
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Refazer o percurso da memória de um sobrevivente tão próximo não é simples em nenhuma perspectiva: como representar um dos episódios mais perversos da humanidade quando ela ainda causou devastações irreparáveis em sua própria vida? As soluções de Spiegelman são pesquisas rigorosas de mapas, ilustrações, propagandas, relatos, viagens a Auschwitz e longas entrevistas com outros sobreviventes, em um processo que exigiu mais de uma década de dedicação.
O trabalho minucioso resulta em uma obra que se tornou preciosa na literatura testemunhal ao lado da de nomes como Primo Levi, Imre Kertész e Katja Petrowskaja e que abre precedente para que outras narrativas gráficas também possam se embrenhar em investigações biográficas semelhantes, a exemplo de Heimat, de Nora Krug.
Trinta anos depois de ganhar o Pulitzer, Maus segue sendo a única obra em quadrinhos a receber a premiação e acumula polêmicas desde sua publicação: um livro que desenha nazistas como gatos pode estar nas estantes de não ficção? Representar judeus como ratos é uma forma de endossar um discurso antissemita? Embora o impulso de Spiegelman em escrever a história de seus pais em quadrinhos esteja muito mais inclinado para o entendimento de como Auschwitz devastou sua família e a si mesmo do que para uma narrativa com caráter educacional, as discussões sobre Maus e outras obras similares abrem espaço para o questionamento: a barbárie nazista, o racismo estrutural ou a violência de gênero precisam ser contados como fábulas ou histórias brandas e levianas para serem aceitos?
Ironicamente, os mesmos ratos, gatos, porcos e cães que aparecem tantas vezes nas fábulas e histórias infantis surgem nos traços em preto e branco de Spiegelman para dar ainda mais força à relação de poder presente no extermínio dos judeus. Inverter uma alegoria tão exaustivamente usada pela propaganda nazista é um dos triunfos representativos de Maus, que também carrega o mérito de transitar entre o passado da memória e o presente dos processos de produção de Spiegelman, destacando que o trauma permanece sempre na vida de um sobrevivente como um corpo estranho. Sem a pretensão de desvendar o nazismo ou explicar o Holocausto, Spiegelman explora sua própria história ao buscar entender como seu pai foi marcado pela guerra e moldado por uma sobrevivência que vai muito além de manter o corpo ileso.
Dias após a proibição, o livro retornou ao debate público ao entrar para a lista de mais vendidos no mundo todo. Assim como Maus não oferece respostas para a barbárie, calar narrativas e discussões difíceis sobre temas que continuam pertinentes não faz com que questões intrínsecas à compreensão da condição humana deixem de existir. O legado do trauma extrapola cercas de Auschwitz e páginas de livros — são demandas emocionais e históricas que seguem atravessando e afetando gerações com narrativas que não podem — ou devem — ser esquecidas.
Matéria publicada na edição impressa #57 em fevereiro de 2022.