Desigualdades,

2020, o ano que não acabou

Historiador inglês revisita o período mais crítico da pandemia e suas ramificações econômicas e geopolíticas mundo afora

25ago2022 | Edição #61

Os mais jovens não devem se lembrar, mas no início de 2020 a vida ainda parecia relativamente previsível. Apesar das notícias que borbulhavam da China, ninguém dava a mínima para os coronavírus e cloroquina era só mais um remédio com uma lista de efeitos colaterais aterrorizante para hipocondríacos como eu. A imprensa se ocupava com o impeachment fracassado de Donald Trump nos Estados Unidos e com os alagamentos e insanidades de sempre por aqui. Em fevereiro, era razoável supor que nada naquele ano seria mais bizarro do que o vídeo nazista do energúmeno então à frente da Secretaria Nacional de Cultura.

E aí veio a pandemia. O SARS-Cov-2 ganhou nome e retrato, com as onipresentes bolotas recheadas de espetos, e transbordou para o mundo, com cenas apavorantes da Lombardia, na Itália, a Guayaquil, no Equador. Ficar perto de outros humanos virou um risco e, de repente, o mundo parou. Após dois anos e meio, os acontecimentos continuam turvos e ainda estamos tentando sair do buraco.

Em Portas fechadas, o historiador inglês Adam Tooze, professor da Universidade Columbia, passa a limpo o período mais crítico dessa história. A narrativa se concentra em 2020, partindo da “irresponsabilidade organizada” que ignorou alertas sanitários e culminou na invasão do Capitólio por trumpistas enlouquecidos, em janeiro de 2021, com a posse de Joe Biden servindo como epílogo. Como o subtítulo indica, o livro acompanha em detalhe as ramificações geopolíticas e econômicas da crise mundo afora, colocando no centro do palco as intervenções maciças — e bem-sucedidas — dos bancos centrais para manter a ordem no mercado financeiro internacional. A narrativa é cronológica e frenética, com tom quase jornalístico que captura o drama do momento e traduz as tecnicalidades e invencionices do mundo das finanças para o público em geral.

Escrever a história do presente é sempre uma ousadia, em especial em circunstâncias tão extraordinárias. Adam Tooze tem a inclinação pessoal, a sensibilidade teórica e a experiência profissional para dar conta do recado. Seu livro sobre a crise global de 2008, o premiado e ainda não traduzido Crashed: How a Decade of Financial Crisis Changed the World, foi escrito poucos anos depois dos acontecimentos, e sua vida acadêmica coexiste com uma produção midiática incessante, que inclui o imperdível blog Chartbook, o podcast Ones & Tooze, intensa atividade no Twitter e colaborações regulares para publicações como Financial Times, Foreign Policy, Guardian e London Review of Books.

O coronavírus substituiu o comunismo como o espectro a rondar todo o planeta

Embora ainda pouco conhecido no Brasil, esse inglês cinquentão neto de um espião soviético arrebanha leitores com uma mistura própria de erudição e uma enxurrada de números. O homem é tão bom que consegue até usar termos tóxicos como “neoliberalismo” sem despertar risadas. Em um mundo em que há mais intelectuais dispostos a escrever do que pessoas interessadas em nos ler, Tooze pode se orgulhar de já ter realizado o sonho da casa própria de muitos acadêmicos: ser um intelectual público reconhecido por elites globais e formuladores de políticas (e recompensado apropriadamente).

Portas fechadas examina justamente como essas elites globais subestimaram os riscos inerentes ao mundo globalizado criado por elas e como reagiram de forma improvisada e — salvo raras exceções — pouco coerente a uma pandemia que, como escreve Tooze, colocou em jogo questões fundamentais sobre a ordem social e a legitimidade política. A partir de março de 2020, o ritmo incontornável do cotidiano desandou, e os pressupostos tácitos que sustentam nossa sensação de normalidade vieram à tona. Em pouco tempo, o fracasso coletivo em conter a disseminação do vírus transformou-se em expectativa generalizada de interrupção das atividades. Em alguns países, governos impuseram lockdowns; em outros, agentes privados trouxeram as autoridades a reboque. Choques de oferta e de demanda afundaram a economia global em meio ao medo tanto da doença quanto do colapso dos sistemas de saúde. Como de hábito, Tooze reporta números estarrecedores: em abril de 2020, estimava-se que mais de 80% da força de trabalho global estava sob algum tipo de restrição, com encolhimento de 20% no pib mundial desde o início do ano.

Não havia precedentes para tamanha contração, e as perspectivas eram apocalípticas. Para além da emergência sanitária — oficialmente, quase 6,5 milhões de mortes até agora, mas estimativas independentes sugerem números até quatro vezes maiores —, a pandemia devastou setores econômicos, quase implodiu o mercado financeiro global e expôs os limites dos sistemas de proteção social mundo afora. Depois da derrota acachapante dos movimentos revolucionários do século 20, o coronavírus substituiu o comunismo como o espectro a rondar não só a Europa, mas todo o planeta, ameaçando a estabilidade social.

Por um instante, ferrenhos defensores do equilíbrio fiscal concordaram que gasto é vida

Era preciso agir, e, por toda parte, as autoridades o fizeram, cada uma à sua maneira e com dificuldades brutais de orquestrar qualquer tipo de ação coletiva. Tooze privilegia os países ricos, sem negligenciar o resto do mundo. A China recebe atenção como superpotência emergente, com admiração do autor pela capacidade de Beijing de reverter o fiasco inicial e conter a circulação do vírus. Em abril de 2021, quando o livro foi finalizado, esse julgamento era razoável. Porém, em pleno 2022, o autoritarismo e a insustentabilidade crescente da política chinesa de “Covid zero” se tornaram bem pouco palatáveis. Eis aí o risco de histórias do presente: algumas coisas envelhecem mal muito rapidamente. Faz parte.

Gasto é vida?

Os dirigentes dos bancos centrais são os protagonistas e quiçá heróis de Portas fechadas, até porque Tooze frequentemente assume o ponto de vista deles. O historiador manja do sistema financeiro internacional e consegue explicar com clareza como o banco central americano agiu rápida e agressivamente para evitar o pior, seja como desafogo quando o sistema político se comportou de forma errática, seja como financiador do endividamento sem precedentes provocado pelos pacotes fiscais gigantescos aprovados com dificuldade pelo Congresso americano. As ramificações foram globais, mas nada é simples: impediu-se o caos por meio de intervenções que injetaram liquidez no sistema, derrubaram taxas de juros e inflaram os preços dos ativos, com benefícios óbvios para seus felizes proprietários. O mercado acionário americano teve desempenho recorde, ao menos até o momento em que a farra acabou, no início de 2021.

Portas fechadas brilha ao mostrar o insólito da situação: a Covid-19 levou tecnocratas centristas e governos de centro-direita a abraçar um grau de intervencionismo outrora inimaginável, promovendo forte expansionismo fiscal e monetário sob a égide de uma “economia de guerra” contra… um vírus. Por um breve período, ferrenhos defensores do equilíbrio fiscal e da independência dos bancos centrais concordaram que gasto é vida e chancelaram a monetização da dívida pública, na contramão de décadas de retórica austera.

Tooze trata a coexistência de intervencionismo maciço e juros nulos como mais um golpe na ortodoxia econômica, o que o leva até a demonstrar simpatia pela “teoria monetária moderna”, corrente heterodoxa que prega que devemos parar de nos preocupar e amar o gasto público. De novo, um ano faz muita diferença: a perspectiva do autor é que o problema crônico dos países ricos é a inflação baixa demais, o que permitiria a governos embarcar em gastos mais ambiciosos para lidar com oceanos de mazelas. Embora tenha causas múltiplas, o pico inflacionário global desde a publicação do livro torna o diagnóstico precipitado. Bastou um pingo de escassez para que o caldo azedasse, os juros subissem e mesmo governos ostensivamente “verdes” distribuíssem benesses para baratear a gasolina.

Seria injusto usar isso contra o livro, e não apenas por só ser fácil prever o futuro em retrospecto. Tooze não vende soluções, apesar de ter suas preferências — politicamente, ele é mais próximo do liberalismo progressista de Elizabeth Warren do que da ortodoxia comportada de Barack Obama ou do radicalismo de Bernie Sanders. O que lhe interessa é a economia política por trás das políticas econômicas e, nesse ponto, sua análise continua certeira. Dada a escala das intervenções, 2020 poderia ter marcado a transição para um novo contrato social. Afinal, períodos de convulsão coletiva são propícios ao questionamento da ordem vigente. Uma boa dose de pressão política poderia ter desaguado em uma nova fase de expansão do Estado de bem-estar social, em especial em países ricos e cada vez mais desiguais, como os Estados Unidos. Mas nada disso se materializou. Pelo contrário, a lógica foi conservadora: parafraseando a surrada frase de Lampedusa, gastou-se como nunca para que tudo permanecesse igual.

Em alguns casos — o Brasil é um deles — até houve redistribuição temporária, mas, grosso modo, os recursos públicos foram distribuídos conforme interesses pré-constituídos. Isenções, empréstimos, subsídios e transferências multiplicaram-se a torto e a direito.

Para Tooze, esses acontecimentos só fazem sentido em perspectiva histórica. Políticos conservadores e bancos centrais só puderam expandir brutalmente o escopo do Estado porque o tal do neoliberalismo saiu vencedor das lutas políticas dos anos 70 e 80. Sindicatos foram esvaziados, a esquerda radical minguou e a independência dos bancos centrais insulou a política monetária das pressões democráticas. Com a inflação em baixa e sem risco de mobilização social, centristas e tecnocratas não titubearam em optar por intervenções dramáticas diante da necessidade de estabilizar o sistema econômico, ainda mais diante da ameaça da extrema direita nacionalista.

Policrise

A crise financeira de 2008 já tinha suscitado resposta semelhante. A novidade em 2020 foi a escala das intervenções. Qual seria o limite? Até onde e em nome de quem a governança tecnocrática pode atuar? Tooze repetidamente volta a essas perguntas, motivado por um diagnóstico sombrio: “policrise” é o termo que ele usa para resumir o malaise ocidental, dado pela confluência e interação de crises que afetam meio ambiente, economia, política doméstica e geopolítica. Para ele, 2020 não foi o ápice, apenas um momento de aceleração. Não à toa, o último capítulo do livro se debruça sobre o Brexit e a grotesca invasão do Capitólio, em Washington. Portas fechadas termina contrapondo o conto de fadas do excepcionalismo americano evocado no discurso de posse de Biden à espiral de crises em curso ou em gestação. O coronavírus, a rivalidade com a China, a polarização política, o radicalismo da direita xenófoba, as mudanças climáticas, as vicissitudes do capitalismo financeiro, a desigualdade gritante — a lista é imensa e não restrita aos Estados Unidos. Tooze não cita Antonio Gramsci, mas é difícil não pensar na frase do italiano sobre crises serem momentos em que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer.

O que acontece se o novo insistir em não nascer? Será possível administrar esses sintomas mórbidos com medidas de gerenciamento em crises cada vez maiores? O pragmatismo tecnocrata pode dar conta do recado ou tende apenas a transformar problemas de hoje em catástrofes de amanhã? Tooze não esconde sua aposta na segunda opção, sem desmerecer os esforços atuais, até pela sua identificação com as elites globais que protagonizam o livro.

Tooze tampouco tem vocação para profeta do apocalipse: um dos prazeres de Portas fechadas é que suas quase 400 páginas são permeadas de entusiasmo — pelo fluxo da história, pela vitalidade do presente e pela sucessão de crises e triunfos que erguem arranjos provisórios e equilíbrios intrinsecamente instáveis. É uma reação sensata depois da perplexidade que a Covid-19 trouxe, e também um antídoto contra vendedores de certezas que conseguiram sobreviver a três anos de pandemia com suas crenças anteriores não só confirmadas, mas reforçadas. 

Quem escreveu esse texto

Pedro H. G. Ferreira de Souza

É pesquisador do Ipea e autor de Uma história de desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil (1926-2013), pela editora Hucitec.

Matéria publicada na edição impressa #61 em julho de 2022.