Política,

A força de Lélia

Uma das intelectuais negras mais expressivas do Brasil, Lélia Gonzalez já abordava no século passado questões essenciais das eleições de 2020

01nov2020 | Edição #39 nov.2020

Há um ano, Angela Davis desembarcou em São Paulo para lançar a sua autobiografia no Brasil. A filósofa e ativista estadunidense é saudada como o ícone do feminismo negro mundial. Davis decidiu, então, provocar o modo como nós, brasileiros, a enxergamos: “Por que no Brasil vocês precisam buscar essa referência nos Estados Unidos? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês poderiam aprender comigo”. Segundo ela, a brasileira já pensava o conceito de interseccionalidade em seus estudos antes de o termo ser cunhado por Kimberlé Crenshaw e ganhar popularidade.

No Rio, à mesma época, Patricia Hill Collins fazia coisa parecida. Autora do livro Pensamento feminista negro (Boitempo), a socióloga estadunidense citou Lélia Gonzalez como uma das suas principais referências. Essa repercussão pode ter estimulado o contato de jovens feministas com essa força que é Lélia Gonzalez. Mas quão decepcionante não seria perceber a dificuldade de encontrar a produção intelectual de uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU). Dificuldade essa mais relacionada a um apagamento sistêmico de produções intelectuais de autores negros — um epistemicídio — do que uma falta de acesso à antropóloga.

Vale ressaltar: não faltaram esforços de estudantes, professores e pesquisadores negros para que a obra de Lélia pudesse ser difundida. No campo editorial, cito o belo trabalho realizado pela União dos Coletivos Pan-Africanistas, que organizou parte expressiva da produção de Lélia no volume Primavera para as rosas negras (2018).

Dessa forma, Por um feminismo afro-latino-americano, lançado pela Zahar, já chega às livrarias como um título essencial. A publicação, organizada por Flavia Rios e Márcia Lima, é uma reunião inédita da obra da intelectual negra mais expressiva do Brasil no século 20 e faz jus ao seu pioneirismo por se aprofundar nas questões verdadeiramente brasileiras.

Diferentes abordagens

A maior parte dos ensaios, intervenções e diálogos reunidos no livro segue uma ordem cronológica que compreende duas décadas — dos anos 1970 à primeira metade da década de 1990 —, o que marca os anseios democráticos do Brasil e de outros países da América Latina e do Caribe, além de reivindicações por igualdade racial nos Estados Unidos e das lutas por independência dos países africanos.

A produção da autora desmistifica a ideia de que os movimentos negros são pouco atuantes no Brasil

Com produção sofisticada e escrita fina, irônica e acessível, Gonzalez transita por diferentes campos do conhecimento. Sua obra pode ser interpretada a partir de três principais abordagens: a decolonial, a interseccional e a psicanalítica. Na primeira, ao criticar o viés eurocêntrico das ciências sociais e do feminismo ocidental, a ativista nos brinda com o conceito de amefricanidade, que faz referência a toda uma ascendência: não só a dos africanos trazidos pelo tráfico negreiro como a dos povos pré-colombianos. Na segunda, reflete sobre as dimensões da dominação sexual, de classe e de raça nas formas de opressão e hierarquização racial. Com relação à psicanálise, destaca-se a sua exposição da “neurose cultural brasileira”, com uma preocupação recorrente, com o não dito, o interdito e a dimensão subversiva da linguagem no cotidiano.

Filha de um ferroviário e de uma empregada doméstica, Lélia Gonzalez nasceu em Belo Horizonte, em 1935. Ainda criança, em 1942, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde viveu até 1994, quando faleceu, vítima de um infarto. Graduou-se em história e filosofia, foi professora da rede pública de ensino, fez mestrado em comunicação social e doutorado em antropologia política. Na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, chefiou o departamento de sociologia e política. Além de ser uma das fundadoras do mnu, ajudou a criar o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), o Coletivo de Mulheres Negras N’Zinga e o Olodum. Sua militância levou-a ao Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM).

A biografia e a produção intelectual de Lélia Gonzalez desmistificam a ideia de que os movimentos negros — sim, no plural — são (e sempre foram) pouco atuantes no Brasil, ideia que voltou com tudo na cobertura sobre a onda de protestos provocada pelo assassinato de George Floyd nos Estados Unidos. Falta sofisticação no olhar daqueles que dizem que nós somos enfraquecidos. Prefiro recorrer à formulação de Vilma Reis: o movimento negro é o movimento social mais bem-sucedido da história brasileira. Sua participação na Constituinte, em 1987, ao lado de parlamentares como Benedita da Silva e Carlos Alberto Caó, é um caso exemplar.

Por um feminismo afro-latino-americano resgata o forte pronunciamento de Lélia Gonzalez na Constituinte durante a reunião da subcomissão destinada às minorias sociais. Um texto inédito que mostra o papel concreto da intelectual e ativista negra na construção do pacto constitucional. Concordo com as organizadoras: é um dos pontos altos do livro.

Não fossem os exemplos citados por Lélia ao longo dos textos, acontecimentos ou produções artísticas de décadas atrás, a obra pareceria ter sido escrita há poucos meses. Além de fazer duras críticas ao racismo e ao sexismo presentes na cultura brasileira, a ativista e intelectual negra defende ferrenhamente candidaturas negras e de mulheres, desde que ancoradas em representação substantiva e de valores; fala sobre a importância da autonomia dos movimentos sociais em relação aos partidos políticos, mas sem deixar de lado a relevância da atuação política institucionalizada no parlamento, em conselhos e em organizações partidárias. Tudo que estamos enfrentando, mais uma vez, nas eleições deste ano.

Neste momento em que percebemos a democracia capenga da qual fazemos parte, a voz de Lélia deve ressoar em nossos ouvidos: “Sem o criouléu, sem os negros, não se construirá uma nação neste país”, brada a ativista na Constituinte. “Não adianta continuarmos com essa postura paternalista de bater nos ombros, mas que na hora H fecha todas as portas para que o negro, com toda a sua competência histórica, não tenha acesso ao mercado de trabalho, à organização dos partidos políticos. Sempre somos as bases, já perceberam isso? Ou então somos cooptados para representarmos o teatro da democracia racial. Não queremos mais isso.”

Quem escreveu esse texto

Yasmin Santos

Jornalista. Foi editora-assistente do Nexo Jornal e repórter da revista Piauí.

Matéria publicada na edição impressa #39 nov.2020 em outubro de 2020.