Repertório 451 MHz,

Asma, boca e cova profunda

Adelaide Ivánova e Mar Becker falam sobre as reflexões e pesquisas que estimulam a escrita de suas poesias, marcadas pela figura feminina e pela ancestralidade

06jun2025

Está no ar o 140º episódio do 451 MHz, o podcast dos livros. Este programa traz uma conversa entre Adelaide Ivánova e Mar Becker, duas escritoras que evocam em seus poemas fortes figuras femininas e encontram semelhanças nas vivências que as levaram até a escrita. 

O encontro ocorreu durante A Feira do Livro 2024 na mesa “Asma, boca e cova profunda”, com mediação da livreira Irene de Hollanda. As duas poetas discutem como a vida dá material para a criação dos textos, seja a partir de experiências pessoais ou a partir de invenções sobre uma ancestralidade desconhecida. Elas falam ainda da organização no processo criativo e os caminhos até a publicação. O episódio foi realizado com o apoio da Lei Rouanet – Incentivo a Projetos Culturais.

Adelaide Ivánova é jornalista, ativista por justiça habitacional, poeta e fotógrafa. Ela publicou cinco livros de poesia, sendo o mais recente Asma, lançado pela editora Nós em 2024 e premiado na categoria de poesia no Prêmio APCA no ano seguinte. Com O martelo (Garupa, 2017), ganhou o prêmio Rio de Literatura. Ivánova é do Recife, vive na Alemanha e tem o nome dedicado à personagem do romance russo Os irmãos Karamazov.

Mar Becker é graduada em filosofia e poeta. É autora, entre outros, da plaquete Cova profunda é a boca das mulheres estranhas (2023) e, mais recentemente, da coletânea Noite devorada (2025), ambos trabalhos lançados pelo selo Círculo de Poemas, da editora Fósforo. Becker é de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, e desde adolescente escreve e publica seus textos online. 

A mediadora Irene de Hollanda com as poetas Mar Becker e Adelaide Ivánova n’A Feira do Livro 2024 Fotografia de Matias Maxx

Já a mediadora desse bate-papo, Irene de Hollanda é sócia e diretora da livraria Megafauna, e idealizadora do Festival Poesia no Centro, que aconteceu no centro de São Paulo em maio deste ano. 

Ao redor do Brasil e do mundo

Adelaide Ivánova contou de onde surgiu a ideia de escrever Asma. “Comecei a pesquisa em 2015, quando estava fazendo uma residência artística na Espanha, entrevistando sobreviventes da Guerra Civil Espanhola, gente que viveu a guerra muito pequenininha e tinha uma lembrança muito fantástica dessa migração a pé pelos Pirineus.” Essa pesquisa a levou a refletir sobre os motivos reais da própria migração e de sua família. “Eu comecei a me perguntar se eu estou descobrindo agora devagarzinho que a minha migração não foi voluntária.”

Ao falar de Cova profunda é a boca das mulheres estranhas, Becker traz a simbologia presente nas diversas profissões vividas por sua mãe: “Eu sou filha de uma mulher que foi açougueira, costureira, depois cabeleireira, três formas de lidar com o corte, com cortar o fio. E esse fio, esse tecido, está muito presente no Cova profunda”, contou. Ela comentou também a origem do título do livro: “A gente ia pegar lanche numa lancheria que era de evangélicos e vinha um bilhetinho dentro do lanche, tipo bilhete da sorte, com um provérbio ou um verso bíblico, e esse foi o ‘cova profunda é a boca das mulheres estranhas’, quando eu tinha 16, 17 anos”.

Origens e processos

Becker, que começou cedo a publicar seus textos na internet, revelou ter certa dificuldade em publicá-los numa plataforma física, como os livros. “O papel tem essa feição de fixidez, ele mantém o texto pronto, e a minha vontade é sempre voltar. O Tarso [de Melo, seu editor] sabe que é muito difícil pra mim, quando tem republicação na plaquete, ele pergunta ‘Mar, tem alguma coisa pra mexer no texto?’, eu digo ‘não me faça essa pergunta, que eu vou querer mexer!’, dá vontade de me mexer em tudo.”

Ao ser questionada sobre sua aproximação com outros formatos, como a dramaturgia e paródias, Ivánova explicou que apesar de não ter experiência com teatro, teve vontade de fazer um monólogo para Asma e não conseguiu. “Só que eu não venho do teatro, eu não tenho experiência e eu li muito pouco teatro. [Li] Ariano Suassuna, que está no nosso coração e, obviamente, o texto de cordel é bastante teatral, mas eu não tinha muita referência, e aí ficou ruim demais.” Ela acabou voltando para a poesia, mas acredita que ainda há algo de teatral em Asma. 

A poeta contou também sobre como uma crítica de seu primeiro livro, Polaróides: e negativos de outras imagens (Macondo, 2019), foi fundamental para seu trabalho seguinte. “Um rapaz de Recife falou assim: ‘esse livro é muito ruim e prova que a vida não é material suficiente para a poesia’. Me deu um ódio, porque eu pensei ‘se a vida não for material da poesia, o que é?’”. Ela completou: “Agora eu vou esfregar na cara desse povo que eu tenho as referências também. O martelo é um pouco mais síndrome de impostor, tem muita referência, tem muita vontade de provar que eu leio muita poesia e tem uma linguagem mais poética, digamos assim”.

Madonna latino-americana?

Irene de Hollanda aponta que nos textos de Mar Becker, principalmente em Sal e Cova profunda é a boca das mulheres estranhas há a presença de muitos personagens bíblicos. Ela aprofunda a questão ao trazer a dualidade entre o sagrado e o profano, citando o contexto do poema de abertura da plaquete: “Deus está lá o tempo todo, mas ele está em dívida com as mulheres, as mulheres estranhas e assimétricas, e aí você oferece descanso pra Deus em seu púbis. Fiquei pensando se isso é um pouco um gesto de castidade ou se é um gesto erótico”, comenta a mediadora. 

“Eu fui criada num ambiente católico em que, mesmo quando eu não frequentava a missa, eu aprendi que tinha que rezar toda noite, por exemplo. E se não rezasse toda noite eu tinha que pedir para a mãe que rezasse por mim, sob pena de alguma coisa acontecer se não rezasse, entende? A santinha passava na casa e tinha essa coisa da comunidade, tinha que ficar uma semana abençoando a casa e tal”, explica a poeta gaúcha. 

Ivánova ainda divertiu a plateia ao comentar o relato de Becker sobre a “santinha”: “Tu falando, eu estava pensando em Madonna o tempo inteiro, de o que teria acontecido se Madonna tivesse crescido na América Latina e tivesse que entregar a santinha na vizinha. Se ela já é boa hoje, imagina se mainha tivesse crescido no Brasil levando a santinha?”.

Mulheres insubordinadas 

Ao descrever o trabalho de Ivánova em Asma, Irene de Hollanda destacou que há a criação de uma “genealogia de mulheres insubordinadas” e a poeta pernambucana contou como a busca pelo passado de lutas do Nordeste foi importante para a concepção do livro. “Eu fiquei tentando encontrar o x da questão e fui estudar muita história. É a história do Nordeste que a gente não aprende na escola. Descobri tantas rebeliões que não entram no livro de história, rebeliões gigantescas que aconteceram contra a colonização, contra o latifúndio, rebeliões contra o sistema.” 

Ao descobrir essa história da região que ela não conhecia, a poeta também passou a refletir sobre a dificuldade de saber mais sobre a sua própria ancestralidade. “Meus amigos de São Paulo que têm uma ascendência europeia recente conseguem saber quem é a avó, quem é a bisavó, conseguem traçar mais fácil. A gente não sabe, quando chega na bisavó, tchau. Às vezes não encontra nem a história dos avós”. Na ausência da história familiar, ela decide criar uma “genealogia revolucionária” para Vashti, personagem de Asma

Becker comenta que nos seus textos também há o impacto da ausência, já que a história de sua avó Manuela é nebulosa. “O que me chegou da minha avó foram dados muito esparsos, nem muito rosto se tinha notícia, nem muita letra… A minha mãe falava, ‘ah, ela falava alto, batia a porta’, e cada vez que eu bato porta, eu penso assim, ‘ó, é a Manuela’. E aí que foram se desdobrando muitos textos”, conta. 

Mais na Quatro Cinco Um

Em abril de 2024, Adelaide Ivánova foi entrevistada pela jornalista e editora Iara Biderman para a revista dos livros, e falou um pouco sobre as suas referências para a criação de Asma. Leia aqui.

Na edição #84, de agosto de 2024, Mar Becker e Adelaide Ivánova publicaram textos inéditos sobre desejo. Leia aqui

Nesse mesmo ano, Asma de Ivánova foi votado como o melhor livro de poesia pelos colaboradores da Quatro Cinco Um. Leia aqui.

Livros do episódio

Saiba mais sobre os títulos que aparecem nesta edição do 451 MHz

  • Polaróides: e negativos de outras imagens (Macondo, 2019). Estreia de Adelaide Ivánova, publicado primeiramente em 2014 pela Cesárea, é um compilado de diversos poemas, esquetes e crônicas da escritora.
  • O martelo (Garupa, 2017). Adelaide Ivánova leva o leitor nesta obra guiado por uma narradora sem nome que conta sobre episódios de violência e descoberta da sexualidade.
  • Chifre (Macondo, 2021). Coletânea escrita pela poeta pernambucana durante a pandemia, que traz poemas anteriores sob nova ótica, explorando o momento político-social vivido nessa época. 
  • Cova profunda é a boca das mulheres estranhas (Círculo de poemas, 2024). Na época d’A Feira do Livro 2024, Mar Becker estreava a plaquete, em que os poemas compartilham as vivências da autora e das mulheres de sua família em Passo Fundo, sua cidade natal.
  • Noite devorada (Círculo de poemas, 2025). Novo lançamento de Mar Becker que traz o amor como temática principal.
  • Os Irmãos Karamazov (Garnier, 2023). Um clássico da literatura russa escrito por Dostoiévski e publicado originalmente em 1880. O romance retrata a história de Fiódor Karamazov e seus três filhos, Dmitri, Ivan e Aliêksei, e se aprofunda na subjetividade das relações familiares e sociais. 
  • A mulher submersa (Urutau, 2021). Coletânea de Mar Becker que traz poemas que abordam temas como amor, morte e linhagem. Foi finalista do prêmio Jabuti de 2021.
  • Sal (Assírio & Alvim, 2022). Inspirado em parte na mulher de Ló, uma personagem bíblica que se torna uma estátua de sal, esse livro de Becker apresenta diversos elementos vinculados ao feminino, inclusive os desprezados. 
  • 13 nudes (Macondo, 2019). Definido por Adelaide Ivánova como “livrinho fofinho de amor”, é uma coletânea de poemas dedicados a cinco meninos.
  • O processo (Garnier, 2025). Escrito por Franz Kafka e publicado em 1925, o romance narra a trajetória de Josef K., que é detido e julgado por razões que desconhece. 
  • Vingar (7Letras, 2021). Coletânea de poemas de Danielle Magalhães com caráter autobiográfico e político, que levanta discursos sobre a sobrecarga de ser mulher. 
  • Talvez precisemos de um nome para isso (Cepe, 2019). Escrito por Stephanie Borges, é um poema longo dividido em dez partes, e volta-se para a pressão estética que mulheres negras sofrem em relação aos seus cabelos.

O melhor da literatura LGBTQIA+

O episódio traz uma sugestão de Milly Lacombe, jornalista, escritora e comentarista esportiva. Ela é autora de sete livros, entre eles o romance O ano em que morri em Nova York (Planeta, 2017) e o ensaio Feminismo para não feministas: como o machismo machuca todo mundo (Planeta, 2024), em coautoria com Paola Lins de Oliveira. 

Lacombe indica o livro Eu sou o monstro que vos fala, de Paul B. Preciado, publicado no Brasil em 2022 pela Zahar, com tradução de Carla Rodrigues.

“Preciado escreveu esse livro depois de uma fracassada palestra que ele foi dar em 2019 para 3.500 psicanalistas franceses. A palestra se chamava ‘Mulher na psicanálise’. Ele começou a palestra perguntando quantos ali na audiência eram homossexuais ou pessoas trans e o rebuliço começou. Muitos levantaram e foram embora”, conta.

“Só que resultou nesse livro delicioso, que é, no fim das contas, a palestra completa que ele não conseguiu dar e fala a respeito das pessoas que, como o Paul Preciado coloca, são dissidentes do regime binário da diferença sexual, que saíram de um lugar e não chegaram a outro. A gente vai sendo cutucado para ver o mundo a partir da perspectiva da pessoa trans”, acrescenta.

Confira a lista completa de indicações do podcast 451 MHz no bloco O Melhor da Literatura LGBTQIA+

O 451 MHz é uma produção da Associação Quatro Cinco Um

Apresentação: Paulo Werneck
Produção:
Beatriz Souza e Mariana Franco
Edição e mixagem:
Igor Yamawaki
Identidade visual: Quatro Cinco Um
Para falar com a equipe:
[email protected]