Literatura brasileira,
Curitiba, cidade das letras
Homenagem a Leminski na Flip, reedições de Dalton Trevisan e uma nova geração de autores expõem a vibração literária da capital paranaense
30abr2025“Ser, eu sei./ Quem sabe,/ esta cidade me significa.” O verso final do poema “Curitibas”, de Paulo Leminski, ilustra com precisão a relação de ambiguidade que personalidades da cena literária da capital paranaense têm com sua própria geografia. Muitas vezes caracterizados como pessoas ensimesmadas, frias ou pouco gentis, os curitibanos vivem assombrados consigo mesmos, e muitos levam para as letras parte dessas inquietações. Isso pode aparecer em crônicas, romances, contos, haikais e mesmo na crítica. A efervescência da produção local guarda muito de reflexão e resposta a esses sentimentos.
No contexto literário nacional, Curitiba está em especial evidência desde o fim do ano passado, quando morreu Dalton Trevisan (1925-2024), o mais curitibano dos escritores. E a cidade segue bastante exposta ao longo deste ano, o que pode ampliar e aprofundar pensamentos a respeito de suas singularidades.

A 23ª edição da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) vai homenagear o lendário poeta Paulo Leminski (1944-89). Nos próximos meses, a editora Todavia começa a lançar a obra completa de Trevisan. Ao mesmo tempo, autores em plena atividade, como Giovana Madalosso, Caetano W. Galindo e Luci Collin, estão em circulação com novos trabalhos. Tudo isso, mais a quantidade razoável de periódicos dedicados a discutir literatura nacional e internacional e as várias editoras de médio e pequeno porte com lançamentos constantes fazem do município de quase 2 milhões de habitantes ao sul do Brasil um espaço privilegiado de pensamento e criação.
Se Leminski vai mobilizar a Flip de 30 de julho a 3 de agosto, a obra de Trevisan já sacode o mercado editorial por conta de seu centenário em junho. A Todavia, que em novembro passado adquiriu os direitos de publicação do autor, antes com a Record, inicia o ambicioso projeto de relançar todos os seus livros. A editora pretende publicar os 37 títulos de Dalton, em edições com projeto gráfico renovado e a seção “Canteiro de obras”, contendo trechos de diários, cartas e desenhos. A partir de 9 de junho, chegam às livrarias os primeiros seis: O vampiro de Curitiba, Desgracida, Ah, é?, Pão e sangue, Chorinho brejeiro e Beijo na nuca. No mesmo mês, sai a antologia Educação sentimental do vampiro, organizada por Caetano W. Galindo e Felipe Hirsch e definida como “um passeio pela obra de Dalton, por seus temas e obsessões, e um vislumbre das mudanças de estilo e ponto de vista do autor ao longo dos anos”.
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Também prevista para os próximos meses, uma coletânea da Autêntica, organizada por Rogério Tavares, traz contos inéditos de Ana Elisa Ribeiro, Cristhiano Aguiar, João Anzanello Carrascoza, Luci Collin, Luís Henrique Pellanda, Marcelino Freire e Veronica Stigger, entre outros, que celebram o estilo e o universo do escritor.

Até o fim de 2025, a Todavia ainda publica a biografia de Dalton escrita por Christian Schwartz. O crítico e pesquisador se debruçou sobre vasto material, com acesso exclusivo a documentos e anotações e uma entrevista inédita que ele articulou com o escritor. “O Dalton filtrava a cidade conforme ele a vivia e, a certa altura, não importava mais de onde ele escrevia. Ele se tornou um dos autores brasileiros que melhor criou uma linguagem universal”, exalta Schwartz.
“Deixar de ser provinciano e criar uma literatura que falasse com qualquer pessoa no mundo era uma das grandes batalhas dele, ainda que o mito construído em torno de sua figura por vezes faça parecer o contrário”. Um dos objetivos de Schwartz é justamente desconstruir o imaginário relativo a Dalton Trevisan como artista recluso e ranzinza, o que o biógrafo detecta como uma coisa bastante longe da verdade quando investigada sua trajetória de vida e arte.
Tradição discreta
A intensidade atual da cena curitibana é simplesmente a continuidade de um processo em movimento há décadas. “Talvez neste momento a cidade passe por mais visibilidade aos olhos do restante do país, mas isso não é de agora”, aponta Luci Collin, escritora, tradutora e professora com passagens pela UFPR e PUC-PR. Para ela, está em curso uma confluência de fatores: novos nomes em evidência nacional, editoras independentes com projetos de destaque e o trabalho de base feito por veículos especializados, como os jornais Rascunho e Cândido, para citar dois. Collin destaca o fato da capital paranaense viver a literatura em diferentes níveis: universitário, editorial, performático, tradutório e autoral. “Curitiba tem essa vocação de estar forte no meio literário, mesmo que muitas vezes silenciosa”.
Christian Schwartz relembra que um autor como Cristovão Tezza, hoje decano das letras curitibanas aos 72 anos, ultrapassou as barreiras do estado há duas décadas, com o romance O filho eterno (Companhia das Letras, 2007), mas sua produção vem desde o começo dos anos 80. “Talvez a morte do Dalton e a homenagem a Leminski na Flip estejam catalisando novamente as atenções para cá”, diz Schwartz.
O jornalista Rogério Pereira, que fundou e edita o Rascunho há 25 anos, diz haver na cidade uma tradição discreta, mas muito profunda, de literatura. Ele destaca que Curitiba gerou grandes nomes, mas nem sempre a projeção midiática foi proporcional ao tamanho deles. “O que temos agora não é exatamente um boom da nossa cena literária, mas o reconhecimento de um trabalho contínuo e qualificado feito há bastante tempo”, afirma. Ele reforça a importância de um ecossistema que junta jornais literários, editoras, eventos e bibliotecas públicas como uma rede de sustentação que alimenta e faz proliferar a literatura local. “É uma literatura que se constrói na contramão do barulho. Tem uma força subterrânea.”
Caetano W. Galindo, tradutor de nomes do tamanho de James Joyce e David Foster Wallace e também escritor que virou best-seller com Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português (Companhia das Letras, 2023), vai na mesma linha. “Não me parece que haja exatamente um momento mágico acontecendo agora. O que existe é uma continuidade que há muito tempo faz a roda girar”, ressalta. “Talvez agora pessoas de fora daqui estejam apenas prestando mais atenção no que sempre existiu, mas nossa literatura nunca dependeu de modismos, e sim de um trabalho discreto e consistente, de ter menos holofote e mais substância.” Isso não significa, reconhece Galindo, que as coisas não estejam favoráveis a Curitiba de algum tempo para cá. “Talvez dê para dizer que tem mais DDD 41 na lista de contatos dos editores e dos organizadores de eventos hoje no Brasil do que teria existido em qualquer outro momento da história”, brinca ele.
Traços curitibanos
É comum, no Brasil, buscarmos alguma identificação mais regional nos escritos de estados fora do eixo Rio-São Paulo. Isso não é diferente com Curitiba, que volta e meia lida com questões sobre existir alguma singularidade em sua produção literária tão diversa. Luci Collin acha possível reconhecer certos traços, mesmo que ela resista a generalizações. “Não há uma ‘escola curitibana’, mas percebo recorrência do experimentalismo e da inventividade, de linguagens mais contidas, da busca por densidade estética e uma afinação fina com o silêncio e com o tempo”, enumera.
O refinamento formal é algo que, para Collin, aparece com frequência, especialmente entre poetas e contistas. Nessa percepção ela cita autores como Leminski e Trevisan, nascidos na cidade, e também outros que se radicaram e ali construíram suas obras. É o caso de Valêncio Xavier (1933-2008), que, vindo de São Paulo, “vira um marco local, um experimentalista na intersecção das técnicas do cinema na literatura”. Ou do catarinense Manoel Carlos Karam (1947-2007) e do paranaense do interior Wilson Bueno (1949-2010), ambos tratados pela professora como gigantes sem a amplitude de recepção que merecem.
A visibilidade que Curitiba deve ganhar na Flip é vista com alguma ironia pelos entrevistados da Quatro Cinco Um. Caetano W. Galindo cita um amigo que, ao saber da notícia, respondeu: “Que bom: agora o Brasil vai saber o inferno que é ser curitibano”. O chiste se deve, segundo Galindo, à chance de muita gente tomar contato com “nossas brigas internas, nossas querelas e encrencas, os pesos e parasitismos de certas reputações eternas, a nossa vida de pequena vila literária. A Curitiba crítica, reclamista, reclamenta, reclamística”, ele prossegue, “vai ser colocada numa tela muito maior”.
Para Rogério Pereira, Curitiba vive as consequências dos mitos criados em torno dela, inclusive o de cidade-modelo, a partir das gestões do arquiteto e urbanista Jaime Lerner como prefeito da capital e governador. Nos anos 90, a cidade passou por forte revitalização, com campanhas de marketing que a tratavam como referência mundial de urbanidade. “Quem mora aqui sabe que não é bem assim, claro, mas o mito foi criado e chegou à ficção. Em certa medida o impacto do Dalton potencializou isso, o do Leminski e também de outros autores, como o Cristovão Tezza, que viraram marcas da cidade”, diz Pereira. “Curitiba é personagem de todos eles, e eles se identificam com a cidade e moldaram parte das gerações seguintes, mesmo que novos autores não sigam as mesmas formas e linguagens”.
A variedade de estilos e características, liberta do peso de cânones justamente por não encará-los como fantasmagorias literárias, é detectada pelo jornalista e escritor Marcio Renato dos Santos. “Estamos diante de uma literatura de língua portuguesa que, embora escrita em Curitiba, é rica em diversidade e pluralidade, sem dever nada a algo do passado ou a algum estilo único”, diz. “A multiplicidade de vozes é evidente na quantidade de autores produzindo com perspectivas próprias.”
Visão de mundo
É interessante perceber, de fato, que publicações e editoras sediadas em Curitiba trabalham com horizontes amplos. A Arte e Letra ou a Madame Psicose, casas editoriais independentes, têm na cartela autores de vários estados e países, e jornais como o Rascunho ou o Cândido publicam críticas, resenhas, entrevistas e agendas de amplitude nacional e mundial.
A perenidade do pensamento literário local vem da tradição de publicações como a revista Joaquim, editada pelo jovem Dalton Trevisan entre 1946 e 1948, e de editoras como a Grafipar, que entre os anos 60 e 80 pôs em circulação livros, quadrinhos e outras publicações com trabalhos de artistas brasileiros. Outras empresas essenciais ao amadurecimento editorial de Curitiba foram a Travessa dos Editores e a Cria, apontadas por Luci Collin como parte de um processo que desemboca na efervescência percebida hoje.
A professora lamenta que Dalton não tenha chegado à marca simbólica dos cem anos, mas vê com otimismo a atenção renovada pela ficção e poesia curitibanas. “É assim que a boa literatura se faz. Ela tem um quê de atemporal, vem com ondas de interesse que a fazem perdurar e se reconfigurar”.
É uma cidade de vibração literária, bem ao gosto de Dalton, que assim conclui o conto “Encontro com Elisa”:
— Quando te vejo?
Acudiu sem se voltar:
— Em Curitiba.
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