A jornada de uma mastectomia em 'Filosofia do mamilo' (Divulgação)

Livros e Livres,

Memória das águas

Na HQ Filosofia do mamilo, Kael Vitorelo convida a mergulhar no rio agridoce de suas experiências como pessoa trans e bissexual

01maio2025 • Atualizado em: 30abr2025 | Edição #93

Não sei se sempre é difícil olhar para si, mas para mim sempre foi. E no contato com outras pessoas trans, seja por trabalho, ativismo ou amizade, percebi que essa experiência é mais comum do que eu pensava — antes de me pensar trans. Afinal, conforme a gente vai se compreendendo, começa a compreender melhor essas dificuldades e o quão coletivas podem ser.

A leitura de Filosofia do mamilo foi mais um dos experimentos que parte de mim desejava evitar, enquanto outra estava ávida para devorar. Página por página, letra por letra, desenho por desenho. Eu sabia que o livro ia me impactar, e decidi embarcar mesmo assim. As sensações foram ambíguas: o prazer de se sentir envolvido pelas águas, mas também a angústia de não conseguir respirar.

Kael Vitorelo é quem nos convida a mergulhar nesse rio de águas agridoces. Com um misto de delicadeza e firmeza, elu pega a pessoa leitora pelas mãos e a submerge nas profundezas do seu corpo fluvial, convidando-nos a conhecer algumas hidrovias pelas quais foi constituída sua trajetória. A narrativa me proporcionou uma experiência intimista, que remete a algo de profundo nas subjetividades e à própria metáfora da água — pela qual tenho apreço e, pelo visto, Vitorelo também. Afinal, “a vida é o rio”.

Ilustração de Kael Vitorelo (Divulgação)

É justamente essa aura intimista que traz visceralidade à HQ de Vitorelo. Elu localiza seu saber, como diria a intelectual feminista Donna Haraway, de maneira muito criativa e interessante: através de suas vivências pessoais tece uma narrativa na qual costura perspectivas decoloniais, transfeministas e interseccionais no que podemos denominar de enfrentamento artístico, pedagógico e crítico à transfobia estrutural.

O corpo fluvial — em que mergulhamos e percorremos junto a Vitorelo — tem como trama principal a jornada de uma mastectomia eletiva ou, como aparece na história, uma “mamoplastia masculinizadora”. Por seu olhar crítico, somado à sua identidade de gênero não binária, evidencia-se uma grande capacidade de tensionamento do binarismo de gênero, expressa na HQ de maneira artística e didática. Vitorelo questiona, por exemplo, por que retirar as glândulas mamárias torna uma mamoplastia “masculinizadora”. Quem define o que “é de homem”? O que torna alguém “mulher”?

Olhar para o outro e ver a si mesmo, para uma pessoa trans, é uma possibilidade rara

Aí vemos uma pegada transfeminista que remete a intelectuais como Judith Butler, Letícia Carolina Nascimento e Paul Preciado, quando discorrem sobre generificação dos corpos, corporeidades e processos de corporificação — práticas que visam modificar ou manter determinadas características físicas, como colocar piercing, cortar o cabelo ou injetar testosterona sintética. Tais construções ocorrem por meio de categorizações que transformam pernas lisas ou peludas, peles macias ou ásperas, ovários e testículos, entre outras características e órgãos em “femininos” ou “masculinos”.

Esse tensionamento é fundamental para a produção de possibilidades de vida para pessoas trans e intersexo. Afinal, estamos imersos em um cistema binário de gênero endocisheteronormativo que, conforme nos ensinam intelectuais trans como Amiel Vieira e Jaqueline Gomes de Jesus, ao patologizar e deslegitimar existências e corporeidades trans e intersexo, cria uma atmosfera voltada para a morte que incentiva e banaliza genocídios. Mas, a despeito da pretensa assepsia desse cistema, nosso desejo de viver — e de viver dignamente — fala mais alto, bem como nossas potências criativas, por meio das quais cultivamos paisagens férteis para a diversidade se desenvolver de maneira saudável e plena.

Profundidades

É impossível não considerar o trabalho de Vitorelo uma narrativa transgressora e biopotente, ou seja, voltada para a vida. Além disso, e autore não cultiva paisagens apenas no que concerne ao gênero. Elu também nos brinda com questionamentos decoloniais, antirracistas e interseccionais. Mais uma vez, a partir de suas vivências como uma pessoa bissexual e birracial, já que é brasileire com descendência asiática e europeia.

A trama também mescla tempos, e assim vamos nadando e sentindo as mudanças das águas agridoces de Vitorelo. As memórias e emoções se alternam como a temperatura de um rio em suas profundidades diversas. Percorremos a dureza de ser taxade de menina e todas as implicações que isso possui, os ressentimentos da puberdade e até mesmo uma acalentadora primeira infância, na qual o gênero ainda não podia lhe afogar.

A recuperação do passado, a narração de memórias e a ressignificação da história transformam o individual em coletivo, ao mesmo tempo em que ressaltam o coletivo que habita o individual. Essa é uma característica das narrativas de si, como autobiografias e autoficções, de pessoas trans: a capacidade de, por meio da linguagem e apesar do cistema, cultivar vida.

Uma das estratégias de manutenção da assepsia cistêmica é manter a ideia de que nossas existências seriam fantasiosas, falsas e antinaturais. Assim, a invisibilização das nossas narrativas é uma forma de impedir a constituição de coletividade e o entendimento de si. Impede os processos de identificação e a criação de tramas intersubjetivas fundamentais para o cultivo das vidas transgressoras de gênero.

Não à toa, para mim houve esse misto de apreensão e desejo em ler Filosofia do mamilo. Olhar para si, numa sociedade transfóbica, não é fácil. Mas olhar para o outro e ver a si no outro, para uma pessoa trans, sobretudo uma pessoa transmasculina, é uma possibilidade rara que não deve ser desperdiçada.

Com Kael Vitorelo, ainda é possível vivenciar essa espécie de cura coletiva ao mergulhar em uma HQ estética, ética e politicamente bem elaborada. A partir da leitura, já não quero mais atravessar o rio para chegar ao outro lado, quero criar guelras e seguir cultivando vidas transformacionais, tecendo narrativas outras, para que um dia nossos corpos, existências e mamilos sejam realmente nossos.

Quem escreveu esse texto

Caio de Souza Tedesco

Historiador, é membro do Centro de Referência da História LGBTQIA+ do RS.

Matéria publicada na edição impressa #93 em maio de 2025. Com o título “Memória das águas”

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