

Literatura infantojuvenil,
Tudo sobre meu pai
Odilon Moraes mergulha na própria infância e flerta com a autoficção em novo livro ilustrado
09out2024“Perguntei para a Carolina se esse novo livro poderia ser considerado uma autoficção. Se todo autor acaba usando a própria vida como alimento das suas histórias, o que é esse rótulo então?”, comenta o escritor e ilustrador Odilon Moraes sobre a pergunta feita à escritora Carolina Moreyra, com quem é casado e tem três filhos.
A dúvida do autor, um dos principais nomes do livro ilustrado no Brasil, se refere a um de seus lançamentos mais recentes: Papai pintava.

Nele, tudo começa quando descobrimos que “aos domingos, papai pintava”. A partir daí, surgem telas com paisagens, frutas, o retrato da mãe, árvores, vaquinhas, além de pinceladas que recriam amigos e a cachorra da família. Cada um desses quadros é acompanhado por outro. Uma tela mais tosca, incerta, naïf, desenhada, rasurada.
É então que entendemos, sem o texto dizer, que há um segundo personagem nessa história. Outra pessoa também pinta aos domingos. Ao lado do pai, está sempre o menino.
Não é à toa que essa relação aparece para o leitor somente nas imagens, criadas com a estética inconfundível de Odilon, cujas ilustrações se equilibram entre o rascunho, a aquarela e um silêncio repleto de significados. É assim porque papai pintava — mas ele pouco falava ou conversava.
Como em outros livros do autor, o silêncio borbulha entre os personagens até se tornar rio caudaloso. Pai e filho não trocam palavras em nenhum parágrafo. Não conversam, mas pintam. Juntos. Lado a lado. Sempre calados.
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Neste instante brota a dúvida sobre a autoficção. Se tudo começa quando “aos domingos, papai pintava”, as coisas ficam mais complexas quando ficamos sabendo que a trama é inspirada na relação de Odilon com o pai.
Dono do silêncio
“O livro é uma tentativa de compreender uma atitude real do meu pai frente à vida”, conta o autor. “Ele sempre foi o dono do silêncio em casa, enquanto minha mãe ficava com as palavras. Tudo o que era dito passava pela minha mãe. Até que ela foi diagnosticada com demência senil e perdeu a capacidade de se expressar por palavras. Deixou de fazer a ponte entre mim e o meu pai, entre meu pai e o mundo. O livro surge nesse momento, em que estou tendo conversas com ele que nunca tinha tido antes.”
Falando assim, pode parecer que a narrativa se esgota na questão da incomunicabilidade e do não dito. Mas Papai pintava toca nesses temas para ir além, oferecendo ao leitor uma costura engenhosa que mais entrega perguntas do que serve respostas pré-definidas e confortáveis.

De um lado, a obra desabrocha uma delicada ficção visual sobre a própria construção das nossas memórias e lembranças. O personagem do pai não apenas pinta, mas sobretudo repinta. A todo instante, ele recria e refaz os quadros já prontos, usando as mesmas telas para gravar sobre elas outras paisagens e rostos.
Nunca terminava um quadro. As árvores de um domingo podiam virar vaquinhas no outro ou qualquer coisa que passasse pela cabeça de papai.
“Esse é o grande paradoxo. O presente e o passado também entram numa corrente de ressignificação. É como naqueles versos do Fernando Pessoa: ‘E eu era feliz? Não sei:/ Fui-o outrora agora’”, declama Odilon.
Além da fluidez da memória e do tempo, o título também demonstra como a comunicação é mais ampla e complexa do que imaginamos. Um diálogo nunca é apenas uma simples coleção de letras organizadas ou fonemas articulados. A certa altura da leitura, fica claro que é mentira que pai e filho não conversam. Eles fazem isso, sim, mas de outra forma. Sem abrir a boca, ambos falam através de tintas, pincéis, cavaletes e lápis de cor.
A obra é uma delicada ficção visual sobre a própria construção das nossas memórias e lembranças
Papai pintava é um livro ilustrado que investiga a linguagem do próprio livro ilustrado. Nesse tipo de obra, o que importa não é apenas a palavra. Tudo é narrativo: as imagens, o contato entre texto e ilustrações, o tipo de papel, o formato da edição, os espaços vazios, a hora de falar e de calar. É exatamente o que ocorre na relação entre o pai e o menino da história, na qual o silêncio, o gesto e o visual falam mais do que as palavras.
E, de alguma maneira, isso também acontece na relação do autor com o pai, que está atualmente com 85 anos. “A gente não conversou sobre a história em si. Mas ela acabou abrindo algumas conversas muito particulares. Ele me contou, por exemplo, que parou de pintar profissionalmente quando foi convidado para fazer uma exposição. Meu pai ficou com medo, foi embora e nunca mais voltou.”
Trilogia
No início deste ano, Odilon inaugurou uma mostra individual em São Paulo, na Galeria Página, onde exibiu uma série de telas. Além disso, já publicou mais de cinquenta títulos. O autor diz enxergar Papai pintava como integrante de uma trilogia informal formada por outras duas ficções autorais: Pedro e Lua e Olavo, ambas também no catálogo da Jujuba.
O primeiro é um clássico do livro ilustrado brasileiro, lançado originalmente pela Cosac Naify em 2004, que conta a sensível amizade de um menino com uma tartaruga. O segundo, de 2018, apresenta um protagonista triste que recebe um presente inesperado e não sabe muito bem como lidar com aquela alegria.
Visualmente, colocadas lado a lado, as três obras formam uma espécie de trilogia das cores: preto, azul e agora laranja. Pedro e Lua é marcado por um céu noturno, escuro; Olavo estampa um azul quase fosforescente; Já Papai pintava opta por um tom sépia, como se estivéssemos diante de uma fotografia antiga, alaranjada pelo tempo e pela memória.
Mas é no conteúdo que as três narrativas se conectam. Todas estão ligadas pelo mesmo silêncio, por uma fina melancolia e por protagonistas meninos. “Para mim, Pedro e Lua e Olavo falam tanto da minha vida quanto Papai pintava”, afirma Odilon. “Mas fazem isso a partir de elementos mais ficcionais. Eu nunca tive uma tartaruga, por exemplo, nem sei cuidar de uma. Mas já tive aqueles sentimentos.”

É inegável que Papai pintava é o mais biográfico dos três, com mais elementos reais e uma estrutura mais próxima da autoficção. Mesmo assim, o escritor e ilustrador sublinha que o importante na literatura é sempre a obra, o texto, as ilustrações, a linguagem e a relação entre palavra, imagem e objeto — não a vida do autor.
“Tem uma parte do livro em que o pai pinta um retrato do seu Milton, que era um amigo de verdade do meu pai. Quando ele estava lendo, deu risada bem nessa hora e falou que nunca na vida tinha pintado o seu Milton. E então ficou meio confuso e me perguntou: ‘Mas esse pai sou eu?’. Não é, né, pai. Quer dizer. É e não é.”
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