Semeando se faz o caminho

Rebentos,

Semeando se faz o caminho

Usando recursos da fábula, Kaká Werá Jecupé reflete sobre a preservação das espécies e a importância de debater ancestralidade e meio ambiente com as crianças

03out2024

Uma grande propagadora de vida não precisa, necessariamente, ser igualmente grande em tamanho. Às vezes é exatamente o oposto: pode ser uma pequena roedora, responsável por carregar sementes e enterrá-las no solo das florestas, semeando espécies e contribuindo com a manutenção e equilíbrio de um habitat que é milhares de vezes maior que ela. A protagonista da fábula contemporânea Corre, Cotia (Peirópolis), do escritor e ambientalista tapuia Kaká Werá Jecupé, é um desses animais que desempenham gigantesca importância ecológica. Mas, nesta história, ela demora um pouco para saber disso, porque sua árvore genealógica, sua ancestralidade e as histórias da sua família estão segmentadas. As razões para isso são, infelizmente, as mais comuns: o tráfico de animais silvestres e a crescente destruição das florestas.

O escritor e ambientalista tapuia Kaká Werá Jecupé (Divulgação)

Nos traços da ilustradora e designer gráfica Sawara — que marcam a segunda colaboração do autor com a filha, que aos onze anos ilustrou As fabulosas fábulas de Iauaretê (Peirópolis, 2007)—, o leitor também se depara com as inúmeras belezas que fazem parte de uma floresta, desde sua habilidade em propiciar a vista de um grandioso céu repleto de estrelas até as graças escondidas em seus menores animais. Aqui, tamanho não é documento, e todo ser mostra seu papel em um ecossistema que reúne povos indígenas, o fino equilíbrio entre espécies e uma conexão subterrânea entre as árvores.

Em entrevista para a Quatro Cinco Um, Kaká Werá fala da tradição dos povos indígenas de criar fábulas, de como tornar o relacionamento com a natureza mais afetuoso e responsável e da necessidade de debater ecologia e crise climática com os pequenos.

De onde surgiu a ideia do livro Corre, Cotia?
Surgiu de uma escuta que tive em um encontro há mais de 10 anos com um ancião do povo Tukano, do Acre, chamado Moura Tukano. Ele me falou que a cotia era considerada um dos animais mais sagrados porque seus antepassados eram os responsáveis pela existência da floresta. Achei aquilo incrível! Fui constatar e é verdade mesmo. Ela é um dos animais que criam florestas.

Por isso escolheu a cotia para ser o ponto central desta fábula?
Justamente por ela representar a inteligência cuidadora e regeneradora da floresta e mostrar que todos os seres, grandes ou pequenos, têm um papel importante na teia da vida.

Como foi escrever sobre meio ambiente e tráfico de animais para o público infantojuvenil? Quais os impactos de os pequenos terem acesso a temas como esses?
Muitas vezes nós subestimamos a capacidade da criança em desenvolver um espírito crítico em relação aos temas que são hoje centrais para a humanidade tornar-se realmente mais humana. A proposta é que, de um modo lúdico, a criança possa refletir sobre estas questões extremamente necessárias para gerar soluções mais conscientes e responsáveis para nós e para a Mãe Terra.

Em Corre, Cotia, você reflete sobre o equilíbrio e as conexões entre as espécies: animais, plantas, florestas e humanos. Como você enxerga essas relações no dia a dia e em uma era de crise climática, ambiental e humanitária?
Neste momento, nós, enquanto humanidade, temos o desafio de mudar o velho paradigma de relacionamento com a natureza, as pessoas e todas as formas de vida. Temos que sair das práticas segregacionistas, usurpadoras, exploradoras e egoicas e reconhecer que somos uma rede interdependente de vidas e destinos.

Qual a importância de debater ancestralidade e pertencimento por meio da cosmovisão dos povos originários? E por que escolheu usar o formato das fábulas para esse objetivo?
Para que nós possamos sair do egocentrismo instalado na cultura humana, que é devastador para o indivíduo e para o coletivo de vidas nas mais diferentes formas, é necessário refletirmos sobre nossas origens, legados, memórias e crenças. É preciso construir pontes para desenvolvermos uma consciência de pertencimento que seja ampla e que considere toda a diversidade da vida. Essa é a contribuição dos saberes dos povos indígenas para o mundo. A escolha do formato de fábula é realmente porque ela facilita ampliar a nossa empatia através de personagens que são animais e seres da natureza. Tem uma magia e um encantamento que nos ajuda a tomar um distanciamento da aridez do mundo.

Que livro você gostaria de ter lido na infância?
O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, que tive oportunidade de ler somente depois de adulto. Tive a sorte de acessar bibliotecas públicas desde cedo e ler muita coisa que desejei.

Como podemos incentivar o hábito de leitura nas crianças?
Inicialmente, não menosprezando a capacidade de entendimento delas. Ao mesmo tempo, procurando maneiras lúdicas e cativantes de se contar uma história. Todos nós gostamos de histórias e somos formados por histórias, aquelas que contam para nós e aquelas que nós mesmos nos contamos. O livro é uma maneira de utilizá-las para os mais diversos fins.

Quem escreveu esse texto

Jaqueline Silva

É estudante de Jornalismo na ECA-USP e assistente editorial na Quatro Cinco Um.