
Literatura japonesa,
Sexo e a cidade
Yukio Mishima explora o desejo feminino e temas camuflados no Japão pós-guerra
13dez2023 | Edição #77Yukio Mishima era um pseudônimo. O escritor que nasceu Kimitake Hiraoka era, ao que indicam suas diversas biografias, um homem de performances. Autor de uma reconhecida obra literária, assinou romances, novelas, roteiros, peças. No teatro e no cinema, ocupou também o posto de ator, além dos de dramaturgo e diretor. Em todas as frentes de trabalho, colocou a intenção de que vida e arte fossem uma só, fundidas num exercício ideológico e estético.

A escola da carne, de Kimitake Hiraoka
Mishima nasceu em Tóquio, em 1925, e começou a escrever ainda criança. Aos 24 anos, lançou um dos romances que o fariam conhecido, Confissões de uma máscara. Com elementos autobiográficos, conta a história de um jovem que flerta com a morte em histórias imaginadas e que descobre seu desejo por homens, mas trata de disfarçá-lo com as máscaras possíveis.
O personagem vive no Japão da Segunda Guerra, um marco temporal importante para a obra do escritor. Ao fim do conflito, suas críticas à ocidentalização do país se acentuaram e alimentaram seus ímpetos nacionalistas. Mishima tinha apreço pela cultura e pelas tradições japonesas milenares e sentiu com pesar o distanciamento coletivo de parte desses elementos no pós-guerra.
Ao mesmo tempo em que entoava um discurso conservador, no entanto, abriu espaço em suas obras para temas como a homossexualidade, o divórcio, o culto ao corpo masculino, a transexualidade, entre outros assuntos considerados tabu — uma ambiguidade que atraiu atenção para sua produção literária.
A morte de Mishima costuma ganhar capítulos à parte por ser considerada emblemática. Em 1970, o escritor invadiu um quartel de Tóquio, junto com companheiros do grupo paramilitar nacionalista Tatenokai. A ideia era dar um golpe de Estado, ao render o comandante e convencer os soldados de que seria patriótico devolver os poderes ao imperador. Ao entender-se derrotado, deu fim à própria vida num dramático seppuku, o suicídio ritualístico dos samurais, sinal de honra e coragem.
O debate sobre o que o autor significa para a obra é prolífico na literatura. No caso de Mishima, sua trajetória agrega camadas a seus romances. Foi o próprio romancista, aliás, que sobrepôs o olhar para sua biografia e seus textos ao adotar a premissa de que vida e literatura são indissociáveis.
Reputações abomináveis
Mais Lidas
“Acreditando ser normal mulheres divorciadas se unirem por laços de amizade, Taeko Asano integrava um seleto grupo de mulheres nessa condição.” O início de A escola da carne, pela voz de um narrador cheio de julgamentos, apresenta o trio de amigas endinheiradas que buscam liberdade e prazer depois de se separarem. Taeko é estilista e dona de uma butique; Suzuko tem um restaurante; e Nobuko é crítica de cinema.
Antes da guerra, ainda casadas, elas eram parte da nata da sociedade nipônica, mas a infidelidade e a busca por diversão tornaram suas reputações abomináveis. Durante o conflito, enquanto os maridos se ocupavam de outros temas, as três buscavam homens jovens com quem pudessem ter relações casuais.
Os personagens vivem angustiados entre o conservadorismo do padrão e a disrupção da dissidência
Todas elas tinham casamentos infelizes e de aparência, mas pareciam acreditar que mantê-los era o natural. Até que outros ventos começaram a soprar e o divórcio apareceu como alternativa, que o narrador atribui à derrota na guerra e à democracia: “Uma coisa era certa: se o Japão não tivesse sido derrotado na guerra, as três certamente teriam mantido a aparência de fidelidade e seriam vistas pela sociedade como respeitáveis esposas.”
As amigas fazem encontros mensais para discutir o que não podem falar em outros círculos. Ali, numa roda íntima e segura, compartilham desejos que outros poderiam ler como depravação. Contam dos relacionamentos que vivem ou viveram, com direito a detalhes sobre o sexo e os corpos.
Enquanto discutem preferências sexuais e estéticas — criticam quando os parceiros têm flacidez —, o narrador, figura especialmente interessante neste livro, se incumbe de descrevê-las com similar verve excludente. Suzuko é apresentada como a que vê “sua bela silhueta desmoronar”, nos encontros está sempre ponderando o potencial calórico do que vai comer. Nobuko era “magra como um palito”. E Taeko devia as “formas proporcionais” à ginástica calistênica.
A história ganha tração quando Suzuko faz uma revelação impensável: tem frequentado um bar gay. O susto inicial dá lugar à curiosidade das companheiras de aventuras. Numa visita ao lugar, gerido por uma travesti, Taeko conhece Senkichi, jovem barman que se relaciona com clientes (homens e mulheres) por dinheiro.
Taeko a princípio desconfia que o moço seja misógino, mas enxerga nele uma mistura de melancolia e solidão, além de um belo rosto. Desconfiada, ela substitui as joias por bijuterias nos primeiros encontros, como prevenção a eventuais ímpetos cleptomaníacos do rapaz.
Senkichi trata Taeko com perversão, numa relação de dinâmica bélica, com ataques e defesas mútuos. A inteireza digna que ela simula fica em xeque. Antes de Senkichi, Taeko gostava genuinamente da própria companhia quando estava apaixonada, “um aspecto frio do seu temperamento”, como sublinha o narrador:
A alegria de seu estado de espírito e a satisfação da solidão nesses momentos não se deviam ao fato de passá-los sonhando com o amado, mas […] por se saber rica, bela e rodeada de homens.
Numa história um tanto magnética, que atrai para o furacão afetivo de Taeko e Senkichi e pincela temas camuflados no Japão da década de 60, quando o livro foi publicado, Mishima explora as nuances do desejo. Seus personagens são inconstantes no que projetam e planejam, e vivem angustiados entre o conservadorismo do padrão e a disrupção da dissidência. São como tantos de nós, divididos entre a ânsia pela mudança e o apego ao conhecido, um equilibrismo que nos torna ambíguos e surpreendentes.
A editoria de Literatura japonesa tem o apoio da Japan House São Paulo.
Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.
Matéria publicada na edição impressa #77 em janeiro de 2024.
Porque você leu Literatura japonesa
Suspense bem calculado
Adaptado às telas em diversos países, romance policial de Keigo Higashino envolve leitor com um crime ocultado por um gênio da matemática
MAIO, 2025