Literatura japonesa,

A identidade irreconciliável

Romance de Yukio Mishima encena o esquema de constituição do sujeito pelo olhar, dentro de um quadro tipicamente edipiano

28jun2022 | Edição #59

Oito meses após a abertura da Expo 70, em Osaka, vitrine de um Japão moderno e pacificado, Yukio Mishima, aos 45 anos, um dos maiores expoentes da literatura japonesa, invadiu o quartel-general das Forças de Autodefesa em Tóquio e, diante de uma plateia de cadetes que mal o escutavam, tentando convencê-los a acompanhá-lo na morte pela restauração do governo imperial, enfiou uma espada na barriga, sendo em seguida decapitado por um de seus discípulos da Sociedade do Escudo, milícia que ele próprio havia fundado.

A radicalidade do seppuku converteu o ato público num dos acontecimentos extraliterários mais surpreendentes da história da literatura, marcando para sempre a imagem de um escritor cuja obra insistia desde o início na glória de um final de sangue pelo confronto com a morte.

O fascínio pela morte como autenticidade e honra foi sendo gestado desde a adolescência do escritor, na combinação peculiar entre a experiência pessoal da homossexualidade e a ocupação do país pelas forças ocidentais. A letra das tradições, em especial a via do samurai (bushido), o caminho honroso do guerreiro em oposição à paz forçada pela ocupação, veio resgatar o conflito do desejo, dando ao masoquismo um sentido heroico.

Mishima traduziu essa combinação numa das literaturas mais originais e reveladoras do pós-guerra, composta de excessos que começaram na expressão de uma linguagem tortuosa e terminaram na radicalidade da passagem ao ato: de uma estética na qual sexo e morte eram inseparáveis para o martírio supostamente heroico e erótico do próprio autor.

Meses antes de sua morte, o escritor concebeu e posou para a série “A Morte de um Homem”, do fotógrafo Kishin Shinoyama. Entre os vários quadros previstos (debaixo das rodas de um caminhão, esperando para ser decapitado etc.), figura a imagem do autor caracterizado como São Sebastião amarrado a uma árvore e crivado de flechas, como na representação de Guido Reni, que havia levado o protagonista de Confissões de uma máscara à primeira ejaculação, aos doze anos. 

O escritor converteu a paz em bode expiatório do seu mal-estar e a guerra em idealização da virilidade. A obra porém não teria alcançado sua ressonância se não tivesse revelado na desmesura um território reconhecível e comum, embora recalcado. O ideal do espírito guerreiro abafado pela paz incômoda dos vencidos.

Elementos autobiográficos compõem a construção do personagem de um menino obcecado pela mãe

Quando visitou o Brasil como correspondente do Asahi Shimbun, em 1952, Mishima conviveu tanto com o patriotismo militarista de japoneses proprietários de terras no interior de São Paulo como com a lubricidade do Carnaval carioca. Os dois polos o acompanhariam até o final, como parte de uma “identidade” torturada, insustentabilidade de uma fusão impossível, que ele converteu em obra.

É difícil entender a incompatibilidade do eu num mundo que tenta desesperadamente aparar as arestas, fazer a alma caber no corpo (e o corpo corresponder à alma), harmonizar as incongruências numa suposta paz do sujeito. “Eu me comporto como um homem normal, mas no íntimo estou doente”, o escritor confidenciou à editora Michiko Matsumoto. Quando da publicação de Confissões de uma máscara, atormentado por pesadelos “no sono e na vigília”, ele chegou a procurar um psiquiatra, mas o abandonou na segunda consulta.

Lacan afirmou a certa altura que o inconsciente japonês seria inanalisável por causa de especificidades do idioma. O marinheiro que perdeu as graças do mar (1963) encena, contudo, e com pleno domínio intelectual, o esquema de constituição do sujeito pelo olhar, dentro de um quadro tipicamente edipiano. Elementos autobiográficos compõem a construção do personagem de um menino obcecado pela figura da mãe, viúva, com quem ele vive numa cidade portuária.


O marinheiro que perdeu as graças do mar, de Yukio Mishima

O dispositivo que dá início ao romance é um buraco na parede entre o quarto do filho e o da mãe. O menino suspeita que o buraco tenha sido deixado pelos soldados estrangeiros que ocuparam o país e moraram na casa, antes deles. É o buraco estrangeiro que lhe permite ver a mãe como outra, despertando-lhe o desejo.

O marinheiro vai se imiscuir nessa visão ao casar com a mãe do menino. Nesse ato de interferência ele poderia simplesmente assumir o lugar do pai e da lei, se esse não fosse um livro de Mishima, se o próprio marinheiro não carregasse o peso da traição de um destino heroico por ter abandonado o mar, e se o menino, como o escritor adulto, não participasse de uma sociedade secreta formada por um punhado de coleguinhas de escola.

A consciência repentina da presença de uma testemunha revela ao voyeur o circuito do seu desejo, o olhar, e lhe permite constituir-se como sujeito. Pego em flagrante, forçado à consciência do próprio desejo pela presença de um terceiro, passa a ver a si mesmo. O problema do sujeito em Mishima é que o esquema de sua constituição e consciência não resulta em coesão, na submissão à lei, aceitação do real e da morte, mas na loucura da passagem ao ato, guiado pelo ideal de honra do guerreiro, pelo confronto erótico com a morte, incompatibilidade entre corpo e espírito.

Morte erotizada 

A dificuldade de falar desse romance é que toda informação é um spoiler. O final, porém, é construído com a maestria de quem revela tudo sem abandonar o suspense. O leitor segue sôfrego para um fim anunciado como o masoquista na direção de uma morte erotizada. O fim é a morte recontada como desejo, com a duplicidade da consciência. É esse sujeito cindido em partes inconciliáveis -que permite a autoironia do final. Depois de discorrer sobre a honra do guerreiro, sua glória e realização na morte, Mishima toma distância do que narra e, na ambiguidade desse distanciamento, desperta o leitor para a força de contradição da literatura: “Como todos sabem, amargo é o sabor da glória”. É a última frase do romance, capaz de reconfigurá-lo, ironicamente, sob a perspectiva do irreconciliável

Essa editoria tem apoio da Japan House São Paulo.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Bernardo Carvalho

É autor de Simpatia pelo demônio (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #59 em junho de 2022.