
A cobertura especial d’A Feira do Livro, que acontece de 14 a 22 de junho, é apresentada pelo Ministério da Cultura e pela Petrobras
MINISTÉRIO DA CULTURA E PETROBRAS APRESENTAM


A FEIRA DO LIVRO 2025, Trechos,
Pai ausente
No romance que o transformou em fenômeno literário na França, o ator e humorista Panayotis Pascot expõe suas angústias ao descobrir que o pai está à beira da morte
02jun2025Da próxima vez que você cair do cavalo é o primeiro romance de Panayotis Pascot. A obra, que fez do ator e humorista francês um fenômeno literário em seu país, chega às livrarias pela editora Ercolano, em tradução de Francesca Angiolillo, e será lançada n’A Feira do Livro 2025 com a presença do autor. Além da participação no festival literário paulistano, que acontece de 14 a 22 de junho, Pascot também é um dos convidados da Bienal do Livro do Rio de Janeiro.
No romance autobiográfico, ele se mostra desesperado após o anúncio de que seu pai está à beira da morte e decide passar suas reflexões para o papel. Resgatando suas memórias penetradas por angústias que envolvem sexualidade, a distância afetiva do pai e episódios de depressão, o autor expõe com franqueza os seus sentimentos e fragilidades.

O livro, que chega ao Brasil com o apoio da Embaixada da França, se estrutura como uma espécie de diário íntimo no qual Pascot reflete sobre a difícil relação paterna, a aceitação de sua própria homossexualidade e os problemas de saúde mental que enfrenta.
Trecho de Da próxima vez que você cair do cavalo
É mais como uma distância neutra, é isso. Um passo para o lado. Eu ando ao lado da vida. Vejo os sentimentos, mas meu braço é curto demais para alcançá-los. Ou talvez eu tenha medo de que eles me alcancem.
Nada me penetra de verdade. Nunca me senti penetrado por ninguém. Não falo de sodomia, mas de alma, de coração.
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Eu não me abro jamais a quem ou o que quer que seja.
Sempre tive esse problema com os outros, mas agora comigo também. De dentro também não entra. Não consigo mais me penetrar. Confiar em um sentimento, escutá-lo, ajustar minha temperatura à dele.
Adoraria tomar decisões com base em um sentimento, adoraria confiar tanto em mim mesmo a ponto de me levantar e largar um jantar aos gritos porque me deu na telha, porque não concordo ou não aguento mais. Um efeito dramático que sempre admirei. Mas não, eu fico e engulo com distanciamento porque, no final, nada entra.
Se você colar seu dedo a um espelho, o dedo refletido nunca tocará seu dedo real. Você pode olhar mais de perto, sempre haverá uma distanciazinha, um milímetro de distância. Talvez seja isso, talvez eu tenha sempre um milímetro de distância, tudo raspa em mim, passa bem perto, mas não me toca jamais.
Herdei isso dele. É claro que se trata de uma proteção e é preciso ensinar seus filhos a se protegerem também. Ele resiste à penetração. Quando sente que começam a entrar, que ele está a ponto de ser tocado, de ser vulnerável. Ele se levanta e vai embora. Abandona o cômodo e também um pouco a vida ao mesmo tempo.
Quando eu era pequeno, pensava que ele estava pouco se fodendo, mas na verdade ele tem é medo.
Meus irmãos e eu aproveitávamos. Quando a gente voltava da aula e ele estava na frente da tv, no canal de notícias, +28 por cento do pib de Taiwan porque a condição dos ferroviários se agrava após as declarações do imã de Drancy… a gente ficava com o saco completamente na lua, então a gente esticava a corda, olhava para ele e dizia coisas que o penetrassem: Sabe, papai, a gente te ama! Ele nos olhava, sorria. A gente sabia que no minuto seguinte ele ia se levantar e sair da sala. E a gente ia poder enfim colocar no canal de desenho.
Paramos com essa brincadeira de dizer “papai, a gente te ama” para ele sair da sala no dia em que meu irmão o encontrou chorando discretamente na garagem, segurando, trêmulo, uma caixa de creme inglês.
A definição de vulnerabilidade é “capacidade de se deixar afetar”. E, na nossa família, um homem não é fraco. Portanto, não somos jamais vulneráveis.
Nada deve entrar. Por isso, pouco sai. É o equilíbrio do meu pai, o cálculo justo para não quebrar muito a cara. Ele encontra sua força nisso. Carrega absolutamente tudo o que nunca evacuou. O que ele não diz, não faz, se torna sua essência. Sua forma de se relacionar com o mundo é o combate, é não ceder, não se vergar, não se dobrar. Para não se foder.
Eu também tinha esse equilíbrio “não sai, não entra”. E aí decidi lutar contra isso. Comecei a querer fazer o contrário do meu pai, pôr tudo para fora. E escolhi essa profissão. Falar de mim, o tempo todo, em toda parte. Abrir o jogo, em cena, na televisão, em um livro. Isso me faz bem, me ajuda a me entender, a me sentir, a me constatar, como alguém que constata um acidente. A gente verifica onde houve danos, para tentar preencher, repintar, consertar. O conserto fica melhor quando é fora, quando é visível, concreto.
Eu pensava que estava aprendendo naturalmente a deixar as coisas entrarem. Mas não… Neste momento, me sinto oco. Boiando.
Você me privou disso, não sei como fazer, e agora você tem raiva de mim por eu não saber. É estúpido, tão estúpido quanto estender um braço, uma mão, tocar, pegar, tão estúpido quanto um carinho, quanto um silêncio de acalanto. Mas não sabemos como fazer, amputaram esse membro nosso. Vai demorar para crescer de novo.
Às vezes te observo de longe e imagino. Um carinho. Minha cabeça no seu ombro. Sua cabeça no meu ombro. A paz por alguns segundos. Isso me causa desconforto, mas me forço a imaginar.
Ou chorar. Chorar é como o gozo, só que dos sentimentos, é deixar que eles aflorem até que assumam o controle. Eu adoraria saber chorar nos braços de alguém, me deixar reconfortar. Eu me sinto mal só de pensar nisso, nunca consegui experimentar. Choro sozinho, e mesmo que isso me faça bem, não é uma consolação. Não me consolo indulgentemente quando choro, é mais pragmático. Espremer o machucado com os polegares para fazer o pus sair mais rápido. Para cicatrizar.
Uma amiga me disse que não consegue gozar e que sua psicóloga aconselhou que ela rememore momentos de orgasmo extremo para reiniciar o impulso.
Talvez eu devesse mergulhar de novo nas minhas antigas lágrimas. Mas, acima de tudo, não consigo deixar de me perguntar: o que acontece com as lágrimas que não caíram?
A Feira do Livro 2025 · 14 — 22 jun. Praça Charles Miller, Pacaembu
A Feira do Livro é uma realização do Ministério da Cultura, por meio da Lei Rouanet – Incentivo a Projetos Culturais, Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos dedicada à difusão do livro e da leitura no Brasil, Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais, e em parceria com a Prefeitura de São Paulo.
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