A autora Bruna Dantas Lobato (Ashley Pieper/Divulgação)

Literatura brasileira, Trechos,

Longe de casa

Horas azuis, romance de estreia de Bruna Dantas Lobato, reflete sobre laços e solidão sob o olhar de uma jovem que decide construir a vida em outro país

23maio2025 • Atualizado em: 02jun2025

Em Horas azuis, Bruna Dantas Lobato narra a trajetória de uma jovem que deixa o Rio Grande do Norte para fazer faculdade em Vermont, nos Estados Unidos. O distanciamento da família, as novas amizades e a aguda mudança de clima marcam a nova realidade da protagonista do primeiro romance da tradutora potiguar, que será lançado na presença da autora n’A Feira do Livro 2025.

O romance, publicado pela Companhia das Letras, narra a trajetória da jovem construindo a sua nova vida. Ela faz amizade com outros imigrantes e se adapta ao novo habitat, ao mesmo tempo que lida com a dor de estar afastada da mãe, com quem conversa todos os dias por videochamada. 

Vencedora do National Book Award pela tradução para o inglês de A palavra que resta, de Stênio Gardel, Lobato faz um retrato do início da vida adulta, que transita paradoxalmente entre as exigências impostas pelo mundo, a saudade de casa e o anseio pelo novo.

Trecho de Horas azuis

Fazia duas semanas que eu não falava com a minha mãe — o maior tempo que passei sem ouvir a sua voz, sem ela me chamar de minha filha, meu amor, minha menina. 

Quando enfim o recesso do meio do semestre chegou, dormi doze horas seguidas, tomei um banho, penteei o cabelo, passei fio dental, espalhei creme Nivea num pedaço seco da minha bochecha, pus uma camada espessa de pomada hidratante nos lábios e lentamente esfreguei loção por todo o meu corpo. Precisei da semana inteira para pôr a vida em ordem, recuperar o sono e me sentir como eu mesma de novo. Lavei a roupa, troquei os lençóis, varri o chão com uma vassoura do armário de limpeza, tirei as manchas da tela do computador. Tentei beber menos café e mais água. Pus as leituras atrasadas em dia e reciclei os rascunhos impressos dos meus trabalhos. Algumas vezes, não fiz nada. Pus música alta no computador e não me preocupei em usar fones. Cantarolei músicas brasileiras. Li apenas por prazer pela primeira vez desde que cheguei, um livro de poemas cheio de imagens de água, e não sonhei nenhuma vez.

Quando a semana terminou, finalmente consegui vender minha bicicleta, como tinha prometido à minha mãe. Andei nela uma última vez até a mesma loja onde a comprei de segunda mão, com o vento frio batendo nos cabelos e o sol brilhando às minhas costas. A certa altura, uma família de cervos correu ao meu lado entre as árvores à beira da estrada e eu abri a boca admirada. Eles eram rápidos, e troquei a marcha para uma mais fácil para conseguir acompanhá-los, os filhotes com manchinhas brancas nas costas saltando com elegância. Por um breve momento, corremos como um só, como se eu fosse parte do seu bando e não uma criatura estranha sobre rodas, até que eles me ultrapassaram e desapareceram entre as árvores, e eu nunca mais os vi. Fiquei um pouco triste de abandonar a bicicleta, e com ela minhas chances de explorar lugares além do campus, florestas, pontes cobertas e estradas de terra que não veria mais, embora também estivesse aliviada de ter uma coisa a menos para preocupar a minha mãe.

Quando liguei para ela para contar a notícia boa, o tipo de notícia que ela gostava, ela atendeu da sala com sua lista de perguntas:

Está bem? Tem comido? Tem dormido?

Contei a ela que tinha devolvido a bicicleta à loja.

Ela soltou um suspiro de alívio, depois parou e levou a mão à boca.

Você não foi até lá de bicicleta, não é? É muito perigoso.

Não, não fui, menti.

Ela balançou a cabeça.

Está certo, ela disse. Bom. Eu estava preocupada com você.

Te liguei algumas vezes. Você desapareceu. Onde estava ontem? E antes de ontem? E antes de antes de ontem?

Eu disse algo sobre estar cansada e ocupada, e contei que memorizei um poema para recitar na aula, li dezenas de artigos acadêmicos sobre representação de órfãos na ficção e passei um fim de semana inteiro terminando um projeto de caligrafia, escrevendo a mesma palavra repetidas vezes num papel quadriculado com uma caneta-tinteiro.

Você estava sendo castigada por algum motivo?, ela perguntou.

E isso me fez rir.

E você?

Ela me contou que minha tia Janaina, uma prima que minha avó ajudou a criar, finalmente tinha feito sua cirurgia do joelho.

Estamos passando mais tempo juntas por esses dias, ela disse.

Agora que ela não tem como sair correndo.

Que bom, eu disse.

Ela estava aqui mais cedo. Foi embora logo antes de você ligar.

Ela olhou para baixo e esfregou o pescoço com uma das mãos. A superfície da tela brilhava como um vidro.

Endireitei a tela do meu laptop e a observei se mexer por trás do brilho, por trás do reflexo do meu próprio rosto. Já era tarde lá, mais tarde do que onde eu estava, provavelmente já havia passado a hora do jantar.

Porque eu sentia falta dela e porque queria me sentir mais próxima depois do meu período de ausência, pensei em lhe perguntar algo inusitado.

Você quer tomar um drinque comigo?

Ela levantou uma sobrancelha.

Como assim? E você bebe agora? Quem é você e o que você fez com a minha filha?

Só um drinque, eu disse, cheia de ousadia inesperada.

Não sei, não, nem sei o que pensar.

Escuta, eu disse.

Estou escutando, ela disse.

A gente merece.

Pisquei para ela, que relaxou a sobrancelha, o resto do rosto.

Tudo bem, minha mãe disse. Vamos fingir que não sou sua mãe.

Ela se levantou e saiu da moldura. Ouvi o gelo tilintando suavemente no seu copo à distância, depois mais alto à medida que ela se aproximava do sofá.

O que é que vocês dizem aí?

Cheers. Ergui a pequena garrafa de uísque Jack Daniel’s de mel que tinha surrupiado da festa que fui com Kayla havia algumas semanas.

Cheers.

Tomei um gole e olhei para ela, para nós, cada uma no seu respectivo retângulo na tela, com ternura.

Por um momento, as coisas pareciam normais e não deslocadas, próximas e não estranhas. Que alívio, pensei. Aquela era minha amiga e eu a conhecia. Falávamos a mesma língua, cantávamos

as mesmas músicas, podíamos ler o rosto uma da outra.

Eu podia relaxar do jeito que só fazia quando os sentimentos podiam continuar não ditos, quando eu podia falar à vontade sem precisar explicar o quanto importava.