O último romântico 

Poesia, Trechos,

O último romântico 

Coletânea de cartas de amor de Fernando Pessoa chega às livrarias, revelando mais um caso do poeta português

28abr2025

Uma nova coletânea de cartas enviadas por Fernando Pessoa para duas das mulheres com quem se envolveu acaba de ser publicada pela Tinta-da-China Brasil, selo editorial da Associação Quatro Cinco Um. Em Cartas de amor, Jerónimo Pizarro, especialista nos manuscritos de Pessoa, atualiza tanto a grafia como as informações sobre os affairs do poeta português. 

As declarações e confissões destinadas a Ofélia Queiroz, a mais conhecida entre as namoradas do poeta, estão presentes no livro, que traz na apresentação uma contextualização desse relacionamento de idas e vindas. O casal se correspondeu entre 1919 e 1920 e, após uma ruptura de quase uma década, Pessoa retomou o contato com a amada — até que, em 1930, eles terminam de vez. 

Um outro caso, menos conhecido, também ganha as páginas. Pessoa se envolveu com a britânica Madge Anderson, irmã de sua cunhada. O relacionamento — que foi motivo de ciúmes de Ofélia – marcou o último ano da vida de Pessoa e é apresentado no livro por meio da correspondência, em versão bilíngue, trocadas entre a inglesa e o português. 

Ilustrado com fotos dos cadernos do poeta, Cartas de amor reúne textos originais de Fernando Pessoa, guardados em coleções particulares e na Biblioteca Nacional de Portugal. 

Trecho de ‘Cartas de amor’ 

Ofelinha pequena:

Não sei se gosta de mim, mas sonho escrever‐lhe esta carta por isso mesmo.

Como me disse que amanhã evitava ver‐me até às cinco e um quarto para as cinco e meia na paragem do elétrico que não é de ali, ali estarei exatamente.

Como, porém, se dá a circunstância de o sr. eng. Álvaro de Campos ter de me acompanhar amanhã durante grande parte do dia, não sei se será possível evitar a presença — aliás agradável — desse senhor durante a viagem para umas janelas quaisquer de uma cor que me esquece.

O velho amigo meu, em quem acabo de falar, tem, aliás, qualquer coisa que lhe dizer. Recusou‐se a fazer‐me qualquer explicação do que se trata, mas espero e confio que, na sua presença, terá ocasião de me dizer, ou lhe dizer, ou nos dizer, de que se trata. Até então estou silencioso, atento e até expectativo.

E até amanhã, boquinha doce.

26/9/1929

Ofelinha pequena:

Como não quero que diga que eu não lhe escrevi, por efetivamente não lhe ter escrito, estou escrevendo. Não será uma linha, como prometi, mas não serão muitas. Estou doente, prin cipalmente por causa da série de preocupações e arrelias que tive ontem. Se não quer acreditar que estou doente, evidentemente não acreditará. Mas peço o favor de não me dizer que não acredita. Bem me basta estar doente; não é preciso ainda vir duvidar disso, ou pedir‐me contas da minha saúde como se estivesse na minha vontade, ou eu tivesse obrigação de dar contas a alguém de qualquer coisa.

O que lhe disse de ir para Cascais (Cascais quer dizer um ponto qualquer fora de Lisboa, mas perto, e pode querer dizer Sintra ou Caxias) é rigorosamente verdade: verdade, pelo menos, quanto

à intenção. Cheguei à idade em que se tem o pleno domínio das próprias qualidades, e a inteligência atingiu a força e a destreza que pode ter. É pois a ocasião de realizar a minha obra literária, completando umas coisas, agrupando outras, escrevendo outras que estão por escrever. Para realizar essa obra, preciso de sossego e um certo isolamento. Não posso, infelizmente, abandonar o escritório onde trabalho (não posso, é claro, porque não tenho rendimentos), mas posso, reservando para o serviço desses escritórios dois dias da semana (quartas e sábados), ter de meus e para mim os cinco dias restantes. Aí tem a célebre história de Cascais.

Toda a minha vida futura depende de eu poder ou não fazer isto, e em breve. De resto, a minha vida gira em torno da minha obra literária — boa ou má, que seja, ou possa ser. Tudo o mais na vida tem para mim um interesse secundário: há coisas, naturalmente, que estimaria ter, outras que tanto faz que venham ou não venham. É preciso que todos, que lidam comigo, se convençam

de que sou assim, e que exigir‐me os sentimentos, aliás muito dignos, de um homem vulgar e banal, é como exigir‐me que tenha olhos azuis e cabelo louro. E estar a tratar‐me como se eu fosse outra pessoa não é a melhor maneira de manter a minha afeição. É preferível tratar assim quem seja assim, e nesse caso é “dirigir‐se a outra pessoa” ou qualquer frase parecida. 

Gosto muito — mesmo muito — da Ofelinha. Aprecio muito — muitíssimo — a sua índole e o seu carácter. Se casar, não casarei senão consigo. Resta saber se o casamento, o lar (ou o que quer que lhe queiram chamar) são coisas que se coadunem com a minha vida de pensamento. Duvido. Por agora, e em breve, quero organizar essa vida de pensamento e de trabalho meu. Se a não conseguir organizar, claro está que nunca sequer pensarei em pensar em casar. Se a organizar em termos de ver que o casamento seria um estorvo, claro que não casarei. Mas é provável que assim não seja. O futuro — e é um futuro próximo — o dirá.

Ora aí tem, e, por acaso é a verdade.

Adeus, Ofelinha. Durma e coma, e não perca gramas.

Seu muito dedicado,

29/9/1929

Domingo

Terrível Bebé:

Gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bombom, e é vespa, e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o Bebé deve

escrever‐me sempre, mesmo que eu não escreva, que é sempre, e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também porque é que havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao

princípio, e parece‐me que ainda lhe telefono hoje, e gostava de lhe dar um beijo na boca, com exatidão e gulodice e comer‐lhe a boca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar‐me ao seu ombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir‐lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar, e porque é que a Ofelinha gosta de um meliante e de um cevado e de um javardo e de um indivíduo com ventas de contador de gás e expressão geral de não estar ali mas na pia da casa ao lado, e exatamente, e enfim, e vou acabar porque estou doido, e estive sempre, e é de nascença, que é como quem diz desde que nasci, e eu gostava que a Bebé fosse uma boneca minha, e eu fazia como uma criança, despia‐a, e o papel acaba aqui mesmo, e isto parece impossível ser escrito por um ente humano, mas é escrito por mim.