

Antes mesmo do governo russo declarar invasão total, Andrei Kurkov já documentava o cenário conflituoso que acometia a Ucrânia. Vencedor do Prix Médicis e finalista do International Booker Prize, o autor escreveu textos sobre seu cotidiano vivendo em meio à guerra, datados de 29 de novembro de 2021 a 25 de fevereiro de 2024, que resultaram no livro Ucrânia: diário de uma guerra, publicado pela Carambaia.
Desde os últimos dias de 2021, dois meses antes do início oficial da guerra, o escritor já registrava em seu diário as suas perspectivas em relação à conjuntura política vigente, que mesclavam uma dose de otimismo com um pé na realidade. Extrapolando a cobertura jornalística, Kurkov compartilha histórias de seus conterrâneos e detalhes sobre o território ucraniano.

Considerado um dos maiores expoentes da literatura ucraniana contemporânea, o escritor harmoniza os seus relatos em meio a uma catástrofe com curiosidades sobre a história, cultura, tradições e língua de seu país. A edição publicada pela Carambaia reúne dois volumes dos diários que Kurkov publicou em 2022 e 2024 em Londres.
Leia um trecho a seguir:
Trecho de Ucrânia: diário de uma guerra
1º de março de 2022
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A hora é agora
Minha amiga jornalista da Alemanha não conseguiu falar comigo em nenhum dos meus dois celulares. Um atendimento automático lhe dizia: “Esse número de telefone não existe”. Mas a internet fez suas maravilhas e, no final, nos falamos pelo Zoom. Depois da conversa, eu ainda me lembrei dessa frase “esse número de telefone não existe” e então vi no Facebook que uma amiga que trabalha no Ministério do Exterior da Ucrânia também reclamou que as pessoas que ligaram para ela do exterior não conseguiram achá-la. Nós precisamos parar de ficar surpresos com esse tipo de coisa. Enquanto eu existir, meu número de telefone também existe. Agora estamos ficando com uns amigos no oeste da Ucrânia. Perto daqui há uma estrada que dá na fronteira com a Hungria. Muitos carros seguem nela. Às vezes param, e o motorista e os passageiros saem para esticar as pernas. Com muita frequência, estudantes indianos e árabes estão dirigindo carros velhos. Dá uma pena terrível deles. Sei que muitos estão viajando de Kharkiv, de Dnipro, de Sumy, onde fazem medicina e outros cursos; estudantes que deveriam receber seu diploma de graduação nesse verão. O que vai acontecer com eles? O que vai acontecer com o futuro deles? Mas o principal é sobreviver! Em Kharkiv, um estudante da Índia foi morto há alguns dias por um míssil russo. Perto de Kyiv, soldados russos atiraram num carro com um cidadão israelenseque estava viajando. Ele também morreu.Para mim, esta guerra já é uma “guerra mundial”. Minha esposa e eu estamos muito preocupados com nossos amigos– um casal franco-japonês que vivia em Kyiv perto de nós. Ele é um ex-diplomata de 85 anos, sua esposa é uma artista japonesa. Eles sempre foram apaixonados por Kyiv e pela Ucrânia e queriam passar o resto da vida aqui. Compraram um apartamento perto da Ópera,e de suas janelas dá para ver a majestosa catedral Vladimirski. Nos primeiros dias da guerra, quando ainda dava para sair de Kyiv sem nenhum problema, nosso amigo francês simplesmente não queria deixar a casa. Aí, quando o ataque se tornou mais constante, sua esposa ficou preocupada e quis sair o mais rápido possível. Eu falei com ele por telefone, argumentando que eles tinham de sair.Por fim, eles se decidiram. Eles têm carro, mas não há gasolina suficiente no tanque. Pelo menos uma saída de Kyiv é segura– a saída para Odessa. Do outro lado não há nenhuma tropa russa. Eu sei que eles partiram, mas devem ter ido com um comboio organizado pelas Nações Unidas. Para onde foram, ainda não sabemos.Ultimamente, nossas noites estão ficando bem curtas. Eu bebo 100 ml de conhaque ucraniano antes de me deitar, adormeço imediatamente, por volta da uma da manhã. Aí acordou várias vezes para checar as notícias. De novo, eu me levanto e cuidadosamente leio as notícias e começo a ligar para os meus amigos. Uma colega de trabalho, uma boa amiga, foi parar em Melitopol, que está ocupada pelo exército russo. Ela fica no apartamento, sem sair de lá. Não sei como ajudá-la. De vez em quando, ela me manda e-mails. Às vezes seu telefone não funciona, depois volta a dar sinal de vida. Outro amigo, diretor de museu, não pôde pegar o trem para Lviv hoje. Ele tentou levar a mãe de 96 anos semi paralisada para fora de Kyiv. Ele a levou para a estação, eles encontraram o vagão, mas, mesmo com passagens, não conseguiram subir no trem.Os condutores disseram que as passagens não importam. Hoje, apenas mães com crianças pequenas serão embarcadas no trem.Trens de Kyiv para o oeste da Ucrânia estão, sim, partindo. As pessoas estão embarcando sem passagem. Quem conseguir embarcar no trem vira passageiro. A cada vagão, há sete ou oito vezes mais pessoas do que assentos.Em fevereiro de 1919, algo similar aconteceu quando os bolcheviques entraram em Kyiv. Eles bombardearam o centro da cidade e mataram qualquer um que estivesse no caminho. Agora, a história está se repetindo. As tropas do patriota soviético Putin circundaram Kyiv, mas não podem entrar na cidade. A cidade é defendida ferozmente. A população civil ou se esconde nos seus apartamentos ou tenta partir no meio de transporte que estiver disponível, ou se junta ao exército territorial para defender sua amada cidade.
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