Escritora Audre Lorde (Joan E. Biren/Divulgação)

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Audre Lorde, a poeta do universo 

Em biografia não convencional, Alexis Pauline Gumbs mostra como a poeta e pensadora do movimento negro e LGBTQIA+ enxergava a natureza e o mundo ao seu redor

07jul2025

Poeta e pensadora do feminismo negro e do ativismo lésbico, Audre Lorde acaba de ganhar uma nova biografia. Audre Lorde: sobreviver é uma promessa, da poeta e acadêmica estadunidense Alexis Pauline Gumbs, chega às livrarias pela Todavia, em tradução de Érika Nogueira Vieira. 

Sem seguir uma ordem cronológica, Gumbs percorre desde a infância até o fim da vida da poeta, morta em decorrência de um câncer em 1992, e mergulha em seus escritos, interesses, paixões e memórias. Mais especificamente, a autora explora a forma como o mundo natural aparece na poesia de Lorde, que observava minuciosamente a Terra e a via como mensageira das condutas humanas. 

É essa faceta tão pouco explorada da vida da poeta que Gumbs vai retratar no livro. Com a missão de levar adiante o legado de Lorde, a autora apresenta sua trajetória como “uma sobrevivente da injustiça contra a deficiência na infância, uma sobrevivente do suicídio da melhor amiga, uma teórica do ensino médio do que significava sobreviver à era atômica, uma ativista universitária contra a irresponsabilidade nuclear, uma mãe que sabia que a poesia podia ajudar a ensinar seus filhos a sobreviverem em um mundo racista, e finalmente uma sobrevivente de câncer, que entendia que a guerra que acontecia dentro de suas células estava conectada a todas as lutas contra opressões no planeta”. Leia um trecho a seguir. 

Trecho de ‘Audre Lorde: sobreviver é uma promessa’

Audre nem sempre apanhava quando se comportava mal. Às vezes a mãe a mandava para a cama sem rezar. Essas noites eram as piores, porque Audre não tinha um nome para a escuridão. Ou as escuridões. A escuridão da noite. A escuridão de seus sonhos assombrados. A escuridão relativa de sua pele sob a sombra do racismo internalizado de sua mãe. “Eu costumava acordar arrasada por pesadelos”, lembra Audre. Adulta, ela descobriu um caminho para lançar mão do que chamou de “um lugar sombrio onde cresce, oculto […] nosso verdadeiro espírito”. Em seu ensaio mais conhecido sobre poesia ela explica: “Esse nosso lugar interior de possibilidades é escuro porque antigo e oculto; sobreviveu e se fortaleceu com essa escuridão”. Mas quando criança Audre tinha medo. Aos quinze anos ainda escrevia sobre seu medo do escuro. Como encontrou a magia na escuridão que a apavorava? Ou, como perguntou em seu 15º aniversário em um poema que marcou como “extraespecial” em seu caderno: “Quantas noites para formar um dia?”.

Esta noite Audre ainda é uma menininha. Ela não está olhando para o teto. Não consegue enxergar tão longe. Seus óculos estão em algum lugar seguro fora do seu rosto para que não os quebre de novo. Ela não está olhando para a sombra da placa do outro lado da rua que se projeta por sua janela. Não está olhando para nada. Escuta. Se estiver no catre no quarto dos pais ela escuta o que a mãe pode dizer para o pai quando ele chega do trabalho. Se estiver na cama dobrável no quarto das irmãs, ela escuta as histórias secretas que as duas só contam uma para a outra quando acham que ela está dormindo. Escuta e ouve as pessoas na rua, as vozes do outro lado do poço de ventilação. Ela ouve o que os moradores de rua arrastam ao passar. O que o embriagado de amor precisa gritar. O que os freios evitam. O que o ônibus libera. Ela ouve, mas não fecha os olhos. Tensa na lâmina afiada/ onde o dia e a noite devem se encontrar, ela ouve. Com medo demais para sonhar.

A escritora Audre Lorde (Joan E. Biren/Divulgação)

“Eu acordava e tinha uma longa conversa com o meu anjo da guarda; quando isso não funcionava, eu escolhia as palavras de que tinha mais pavor: monstro etc. e as dizia até que as despia de tudo além do som — e me punha para dormir com os ritmos delas [risos]. Eu tinha uma relação muito íntima com essas palavras silenciosas — palavras que continuavam na minha cabeça. Quando eu ainda tinha medo demais de lidar com meus sentimentos, escrevia poemas sobre eles.”

Mas antes que pudesse rir e contar essa história, ela teve que superar milhares daquelas noites trabalhando em silêncio com as palavras. Ela podia falar com seu anjo da guarda inútil desde que não desse um pio. Se a mãe a tivesse mandado para cama sem rezar para o Senhor como castigo, ela não podia nem se dar ao luxo de ser ouvida rezando. Dividir um quarto tinha isso. Sempre havia alguém ouvindo, mas não o que ela realmente queria dizer. Então, em vez de dizer as palavras em voz alta, ela lhes assistia se transformarem em feixes nos faróis que passavam e em refrações dos postes. As palavras se tornavam prismas em que a luz encontrava a si mesma e se rompia.

Ela escurece contra a escuridão; e seu rosto

Apenas somando pensamento a pensamento eu traço.

É provável que algumas das imagens dos pesadelos que assombravam Audre vinham diretamente dos contos de fadas mórbidos e das rimas infantis da Mamãe Ganso que ela decorava, e também de um de seus poetas favoritos de rimas pós-infância, Walter de la Mare. De la Mare foi um poeta britânico que às vezes usava uma nova grafia de seu nome, Ramal, para invocar o nome hindu para um menino destinado a ser astrólogo. Walter de la Mare escrevia em um ponto de encontro entre sonhos, narrativas, mitologia e lenda. Muitos de seus poemas viviam no que Audre chama de as margens do sono ou o que De la Mare chama de os escarpados da terra dos sonhos. Cheios de lobos, banshees, fantasmas, bruxas e toda uma variedade de circunstâncias sob as quais crianças inocentes morrem e desaparecem, os poemas de cantilenas sinistras e oníricas eram o material de pesadelo perfeito para qualquer criança sensível e alfabetizada que já tivesse medo do escuro.

De la Mare não tinha uma perspectiva feminista negra sobre a escuridão. Seu único poema pacífico sobre o sono diz: “durma, durma, adorável alma alva”. Audre pode ter se identificado com a criança em seu poema “The Child in the Story Goes to Bed” [A criança da história vai para cama], que roga aos anjos da guarda por proteção como ela fazia, pedindo: “Vocês anjos brilhantes que me guardam,/ Ensombreiem-me com asas arqueadas/ E mantenham-me na noite obscura/ Até que a alvorada outro dia traga”. Mas a criança em questão está em um quarto infantil, sob o cuidado de uma criada. Como todos os livros de poesia a que a jovem Audre tinha acesso, a obra de De la Mare não era concebida para uma garota negra amedrontada do Harlem. Audre usou sua mente para transformar o que ela tinha em o que ela precisava.

As imagens assustadoras na poesia e nos contos de fadas da infância de Audre eventualmente se tornaram um lugar de prática e transformação. Ela não podia fugir do medo ou da escuridão, então teve de moldar sua relação com ambos até que virassem coisas que ela pudesse usar. Ela se tornou as personagens aterrorizantes dos poemas de De la Mare. A bruxa que deixou todos os seus apetrechos mágicos caírem da bolsa enquanto dormia no cemitério e libertou os espíritos dos mortos. A rainha Djenira, uma princesa da Caledônia com damas de companhia núbias cujo nome significa “destruidora de homens” e cujos sonhos trazem vozes encantadas de pássaros de outro mundo. O poderoso guerreiro negro que sabia que “Dos séculos ruidosos/ Os tolos e os temerosos desbotam/ Contudo queimam inextinguíveis estes olhos guerreiros/ Que o tempo não embaçou nem a morte desanimou”. Ela se tornou o Errante, em “The Journey” [A jornada], que ao se deparar com a miragem tentadora da luz do sol e do conforto fácil, precisa manter seu rumo escolhendo “a inospitalidade da noite escura” de novo e de novo. Ela se alfabetizou na mágica da repetição e no encanto do ritmo. Ela se tornou uma garota que sabia transformar monstros em significado. Uma garota que sabia enfrentar o escuro sem as orações costumeiras. Uma garota que sabia obter paz e poder do que de outra forma poderia tê-la destruído.

Dos poemas publicados de Audre, “To a Girl Who Knew What Side Her Bread Was Buttered On” [Para uma garota que sabia tirar vantagem do que tinha] é a evidência mais óbvia de suas primeiras influências de poesia de fantasia e de contos de fadas. Em diálogo com “The Journey” de De la Mare, “To a Girl Who Knew” foi um poema que ela trabalhou e retrabalhou a partir da adolescência. Ao contrário da maior parte de sua poesia publicada quando adulta, ele reproduz o ritmo de cantilena e as rimas lúdicas que ela adorava quando criança.