Rupturas,

Anatomia da riqueza

Antologia reúne textos clássicos da fisiocracia, uma das primeiras teorias que ajudaram a entender a dinâmica econômica

01fev2021 | Edição #42

Costuma-se atribuir a Adam Smith a paternidade da economia como ciência. Há boas razões para considerar A riqueza das nações a obra fundadora de um novo domínio da filosofia moral (ou, como preferia o autor, da jurisprudência), que começara a ser explorado por outros autores, mas que apenas com a síntese de Smith adquire contornos mais nítidos. Como explica David Hume, amigo e mentor de Smith, a economia é uma ciência de data recente, que trata de uma questão moderna. Não é que em outros tempos não houvesse economia e não se tenha escrito sobre ela. Hume escreve em 1741 e tem diante de si a cena de uma prosperidade inédita na história europeia. França e Inglaterra sucederam aos Países Baixos, à Espanha e a Portugal no domínio dos mares e tornaram-se nações opulentas como nenhuma outra na história. É mais do que hora, portanto, de incluir esse fenômeno no rol das preocupações dos que se dedicam ao estudo da “natureza humana”. A riqueza das nações, publicado em 1776, seria o atestado de maturidade da economia nascente, ciência talhada em justa medida para o mundo moderno. 

O próprio Hume publicara em 1752 um conjunto de ensaios, Discursos políticos, em que a matéria econômica tem lugar de destaque. Ele analisa a possibilidade de erigir uma ciência dedicada ao estudo do comércio e da riqueza a partir da ideia de que a investigação da causa e da origem da riqueza das nações está voltada — como aliás mostra a última parte do livro de Smith — para os fundamentos da arte de governar, o que inclui a administração da justiça, a manutenção das fronteiras externas e da paz doméstica, a educação e a saúde públicas, e assim por diante. As questões propriamente econômicas — e Hume se detém em especial sobre a moeda, a dívida pública e a balança de comércio — têm interesse apenas na medida em que dizem respeito à finalidade última de toda política: a manutenção de uma ordem político-jurídica regulada por leis claramente estabelecidas e aplicadas de maneira regular e equânime. 

Vertidos para o francês em 1754, os Discursos políticos se tornaram referência no debate intelectual da Europa das Luzes. Na corte de Luís 14, um talentoso médico, o cirurgião François Quesnay, leu o livro por recomendação de seu amigo Mirabeau e encontrou um adversário à altura de suas próprias ambições intelectuais e políticas. Seria um exagero, talvez, dizer que a fisiocracia nasceu como uma reação a Hume. Mesmo porque estão de acordo com o filósofo escocês na crítica aos mecanismos protecionistas adotados pelos países europeus no século 18 (as políticas ditas “mercantilistas”) e na defesa do livre-comércio como único dispositivo capaz de assegurar a riqueza das nações de forma constante e duradoura. Mas se, para Hume e, depois dele, Smith, a riqueza das nações é gerada pelo conjunto das atividades comerciais, o que inclui a agricultura, a manufatura, o comércio e o investimento público, para os fisiocratas ela deriva de uma única fonte: a terra, componente de uma ordem natural imutável. A partir desse princípio, os fisiocratas vão deduzir os lineamentos necessários da ordem política e econômica — que para Hume e os seus, ao contrário, é uma realidade puramente histórica. 

Regras essenciais

Os primeiros escritos dos fisiocratas, que se definiam como uma escola ou “seita” de “economistas” (o termo se tornou corrente graças a eles), vêm à luz na década de 1760, começando pelo magistral Quadro econômico de Mirabeau, publicado em 1760 e depois modificado a partir de correções de Quesnay. É um marco do pensamento econômico moderno, que um estudioso do assunto, Rolf Kuntz, explica em seu livro Capitalismo e natureza, de 1982, como exposição sucinta das “regras essenciais” da produção e circulação de riqueza em uma nação, em condições ideais de equilíbrio, contendo a descrição do “movimento interno de uma economia e mostrando, em forma resumida, as transações com mercadorias, o fluxo de renda e as várias despesas. Essa economia é constituída por três classes, denominadas produtiva, proprietária e estéril”. 

Crítico de Adam Smith, Keynes e Marx, sociólogo francês afirma em livro de 1934 que toda moeda é uma crença social

Para entender o que é um quadro econômico, deve-se ter em mente que, na paisagem intelectual do século 18, vigora a “lógica do tableau” (quadro). A percepção humana é dada em sensações. Mas elas não são nítidas; ao contrário: as imagens costumam ser claras no todo, mas obscuras nos detalhes. Entendemos uma tela de Rafael ou de Caravaggio, mas não saberíamos dizer ao certo quais partes formam essa representação ou qual a relação determinada entre elas. É aí que entra a análise, que decompõe a imagem e isola os elementos, como se fosse numa anatomia. Dispondo-os em série, remonta-os a partir das ligações necessárias entre eles, colocando-os num discurso, que explica a imagem. Olhamos novamente para o quadro de um desses mestres italianos, e agora sabemos com certeza o que estamos vendo. Utilizado na história natural para a classificação dos seres vivos e na medicina para o estudo e tratamento das patologias, esse procedimento é estendido pelos fisiocratas à análise da riqueza. 

O quadro econômico organiza numa imagem complexa, formada por relações de troca e reciprocidade, o ciclo invisível que perpassa a sociedade comercial, da extração dos produtos da terra à sua circulação e ao efeito multiplicador que esse processo engendra, os seus meios, os processos e suplementos daí decorrentes etc. A geração da riqueza adquire visibilidade, uma vez projetada em escala compatível com o olho humano. Vemos diante de nós a lógica que governa a sociedade em que nos encontramos. É verdade que esse prodígio tem um efeito limitado, pois, afinal, o quadro econômico é acompanhado por uma glosa. Mesmo assim, é um instrumento eficaz de sistematização da experiência, que torna perfeitamente inteligível o que antes nem sequer era visualizável. A experiência humana, em uma de suas dimensões mais imprevisíveis, torna-se, com isso, perfeitamente regular, e pode ser objeto de ciência. 

O quadro econômico é o texto que abre a excelente coletânea Fisiocracia, organizada por Leonardo Müller. Como ele explica no prefácio, “Se hoje a atividade dos economistas consiste, acima de tudo, na construção e manipulação de modelos, os fisiocratas mereceriam ser lembrados como os autores da primeira obra a empregar, de modo sistemático, a modelagem como método de investigação, assim como da primeira a explorar as implicações de um modelo econômico na avaliação e no desenho de políticas públicas”. Representantes de sua época, os fisiocratas continuam vivos na nossa, em que a prática da ciência econômica permanece vinculada ao exercício do poder, respondendo por boa parte do exercício da soberania e da arte de governar em sua versão contemporânea. 

‘Os fisiocratas mereceriam ser lembrados como os primeiros a explorar as implicações de um modelo econômico no desenho de políticas públicas’

Hume não esconderá seu desgosto diante de uma contestação tão genial de suas ideias, e chega a dizer, com uma pitada de destempero, que Quesnay e os seus seriam mais dogmáticos que os teólogos (escolásticos) da Sorbonne. Essa tirada tem um fundo de verdade: a economia tem sido ao longo dos tempos uma ciência que aspira ao caráter dogmático de uma doutrina. Mas ela recobre afinidades mais profundas entre linhas de pensamento divergentes. A ideia de que a análise da riqueza é uma questão política pressupõe, tanto para Hume ou Smith como para Mirabeau ou Quesnay, a ideia de sociabilidade natural da espécie humana. Em seu entender, ela nunca se encontrou em um estado de natureza marcado pela insociabilidade extrema uma guerra de todos contra todos. 

Em textos sobre a América Latina, Hobsbawm critica os erros da esquerda e receita Adam Smith para combater o narcotráfico

O inimigo comum dos economistas, dogmáticos ou críticos, é Hobbes. Não existe contrato original histórico, não há pacto fundador da sociedade que venha suprimir uma perpétua agressão. Tudo indica que desde sempre, antes mesmo de entrarem em sociedade, os humanos se encontram em relações de transformação e apropriação, em constante troca, comercial ou não, com seus semelhantes, com outros animais, com os vegetais, com a geologia e o clima. 

Nesse ponto os fisiocratas foram além de Hume e Smith, e pode-se dizer que conceberam a economia como a ciência dessas relações. Veem a espécie humana no centro de uma teia que se tece ao seu redor, um pouco segundo deliberações próprias. Os traços definidores dessa espécie que tudo mobiliza em torno de si são a busca pelo prazer e a rejeição da dor. 

Para Quesnay, o direito à vida, assegurado pelo soberano, longe de se esgotar em si mesmo, como pensava Hobbes, engendra um suplemento, o direito à propriedade, em particular da terra, bem produtivo, que, se devidamente tratado e explorado, multiplica seus frutos para além da satisfação das necessidades mais primordiais e cria muitas outras, lavradas pela imaginação, cuja satisfação redunda no incremento da capacidade de gozar (ou usufruir) de bens e situações que, ligadas à sensação, definem o que se entende por “vida”: quem goza, dirá Condillac, um contemporâneo, vive bem, e, com isso, vive mais. Portanto, a economia, como ciência da relação, inclui uma filosofia do desejo. E este, como sabia Quesnay, é uma função do que se entende, no século 18, por “economia animal”, ou a organização específica dos órgãos e funções que distinguem a espécie humana de outras.  

Corpo político

Esta última expressão lembra-nos que a economia como ciência das relações do corpo político é muito próxima da medicina como ciência das relações que perfazem o corpo humano. A figura de Quesnay é emblemática disso. Cirurgião reputado, fisiologista de primeira linha, torna-se economista como que naturalmente, sem sobressaltos. Isso não deve nos espantar. Na época das Luzes, o conhecimento se expande por meio da analogia, da transposição de temas, modelos e conceitos de um domínio a outro da experiência. A ideia de corpo político é uma metáfora, mas não é uma simples metáfora: permite a adequação do aparato teórico-conceitual das ciências médicas àquelas ciências que depois serão chamadas de sociais. 

Aos nossos castos olhos, educados na disciplina de uma objetividade austera, esses deslocamentos podem parecer permissivos, mas é graças a eles que a economia se torna possível enquanto ciência. Como explica Müller, “Quesnay substitui o modelo bancário-contábil de circulação por um modelo fisiológico. Em analogia não exatamente à circulação do sangue, mas do princípio vital dos organismos, a sociedade vive apenas enquanto suas riquezas circulam. Como vários dos textos aqui reunidos demonstram, os fisiocratas veem a sociedade como um organismo que, para se manter vivo, precisa incessantemente voltar ao ponto de partida e reiniciar o processo. Ele descreve assim não apenas a circulação das riquezas, mas também a reprodução desse corpo social”. 

Esse ponto é tão importante que Smith voltará a ele em ao menos duas passagens de A riqueza das nações, propondo uma analogia fisiológica diferente, não a título de ilustração, mas para mostrar uma divergência de fundo, em relação a Quesnay, quanto à própria ideia do corpo político-econômico como totalidade e, por conseguinte, quanto ao princípio de sua estruturação. Estático para os fisiocratas, o corpo político, marcado pela produção e circulação da riqueza, é dinâmico para Smith. Passível de controle para os primeiros, responde mal a intervenções bruscas para este último. 

Por trás dessas diferenças, encontraremos uma antiga polêmica médica: deve o corpo humano doente se recuperar por si mesmo ou sofrer uma intervenção? Muitas intervenções são desastradas; outras, embora ousadas, dão bons resultados: o liberalismo de Smith se perfila com a medicina hipocrática, o dos fisiocratas está mais próximo da medicina moderna. Entre o corpo político e o corpo humano, as aproximações muitas vezes se dão por meio de espelhamentos e inversões.    

‘Os fisiocratas veem a sociedade como um organismo que precisa incessantemente voltar ao ponto de partida e reiniciar o processo’

O volume ora oferecido ao leitor brasileiro inclui, além de textos de Mirabeau e de Quesnay, outros de seus colegas, como Badeau, Mercier de la Rivière e DuPont de Nemours. Um resenhista mais implicante poderia se queixar da ausência dos ensaios de Quesnay sobre o direito natural e sobre as máximas gerais do governo econômico. Mas eles foram traduzidos no volume Quesnay, organizado por Kuntz e publicado em 1984 na extraordinária coleção Grandes Cientistas Sociais, coordenada por Florestan Fernandes para a editora Ática. 

De minha parte, parece-me que haveria lugar para um ou dois textos de Turgot, que, embora não fosse um membro da “seita fisiocrática”, é, de algum modo, o seu menino de ouro. Alçado, em 1774, sob o aplauso dos filósofos, à posição de ministro de Estado para assuntos econômicos, empreendeu uma frustrada, mas não menos meritória, tentativa de reforma fiscal do Estado francês. Deixaremos para os adeptos da história conjectural em sua vertente mais fantasiosa imaginar o que não teria sido dessa reluzente monarquia se o rei tivesse prestigiado o filósofo-economista, levando a cabo suas reformas.

Quem escreveu esse texto

Pedro Paulo Pimenta

É autor de A trama da natureza: organismo e finalidade na época da Ilustração (Editora Unesp).

Matéria publicada na edição impressa #42 em janeiro de 2021.