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Dalton para todos

Pinçados do universo brutalmente adulto do ‘Vampiro de Curitiba’, narrativas ilustradas abrem as portas para a obra do escritor

25set2024 | Edição #86 out
Ilustração de Odilon Moraes para O ciclista, de Dalton Trevisan (Divulgação)

Cada autor é conciso à sua maneira. Dalton Trevisan é concisão moral, tudo é o que é. Autor epigráfico, como se fosse possível dizer mais no futuro, texto tal qual um anúncio ou, ainda, uma concisão como “tarefa de manipular coisas miúdas”, como escreveu Abrahão Costa Andrade no ensaio “Angústia da concisão”.

Agora o leitor que já conhece Dalton terá oportunidade de apreendê-lo por um ângulo inédito. Chuva e O ciclista acabam de chegar pelo Reco-Reco, selo infantil da Record. Nos dois livros, Dalton se lança para todas as idades. Com textos de apoio do pesquisador, poeta, crítico e editor Augusto Massi, chegam em momento fecundo, quando a literatura para jovens parece vicejar. 

Dalton é um autor vigoroso, está na ativa a caminho de portentosos cem anos de idade. Entenda-se na ativa um autor que se volta para a própria obra como espécie de editor e relojoeiro, revendo velhos textos com o frescor da primeira escrita. Dalton selecionou, em 2023, mais de noventa textos de seu acervo para a seleta Antologia pessoal, também publicada pela Record. A disposição em atualizar seu olhar sobre o próprio trabalho é uma valorização do ofício como gesto escandalosamente literário, um escritor que não deserta a obra.

O “Vampiro de Curitiba” escreveu contos e novelas distribuindo personagens complexos em poucas linhas, com eficiência — palavra ultrajante para a literatura. Eficiência no sentido de fina execução, diálogos de oralidade exímia e ironia em farpas. Dalton tem uma exatidão só dele, talvez o humor seja a origem de sua concisão. Aquele que interpreta o drama tem algo em comum com todos os outros que também o fazem; já o humor é singular, no assoalho do humor está a fatalidade, a catástrofe, o humor é completo. Dalton também é uma espécie de chargista textual que com uma pincelada única a figura.

Pinçar um recorte infantojuvenil do universo brutalmente adulto de Dalton foi tarefa bem-sucedida, acompanhada de ilustrações de grandes artistas, sem abrir mão da voz crítica, aqui também poética, do “Vampiro”. Os textos escolhidos não escondem a apreensão e a morte. A divisa entre a literatura adulta e a infantojuvenil tem ficado cada vez mais pautada pelos temas transversais, não só pelas grades que protegeriam moralmente as crianças. Não importa qual seja o modelo vigente de educação para a infância, Dalton é para todos.

Muitas versões

Chuva e O ciclista tiveram longo caminho até chegarem às atuais versões. Foram publicados e republicados várias vezes, recebendo, a cada prelo, outra demão de reescrita. Os dois contos foram publicados inicialmente no jornal Gazeta do Povo nos anos 50, tendo O ciclista saído primeiramente como reportagem, para depois alcançar a ficção. Os textos receberam modificações em diversas outras publicações, incluindo a versão em Mistérios de Curitiba (1968).

Nestas edições infantojuvenis, as ilustrações participam do texto, também clarejando Dalton e seu cosmo. Chuva é ilustrado por Eloar Guazzelli e O ciclista por Odilon Moraes, ambos os artistas premiados, celebrados pelo mercado e pelos leitores.

Em Chuva, a narrativa descreve as reações ao que é incontornável. A água da chuva é o de menos: os óculos do míope, o coqueiro, a teia de aranha, o guarda-chuva, até uma velha meia de lã arruma o que fazer. As ilustrações de Guazzelli mostram o aguaceiro escurecendo o dia, mesmo quando a chuva é branda. Os objetos são em tom único, pois a luz do dia perde o palco. Tons azuis e cinza refrescam as páginas e, ao mesmo tempo, fazem lembrar a aflição de tantos outros personagens de Dalton. Entre eles, os do conto “Os dois velhinhos”: internados no mesmo quarto, um deles tem acesso à janela e descreve as maravilhas lá fora; na morte deste, o outro finalmente ocupa a cama privilegiada com vista para o mundo, mas descobre que não há nada mais que um saco de lixo. 

Nos dois livros, há um perigo sorrateiro, como na vasta obra do autor, no cume dos seus 99 anos

Em Chuva, também há velhos — esses têm os pés frios. Há os que não temem a chuva, outros que a temem, nenhum deles será protegido pelo guarda; um afogado se afunda ainda mais no rio; os sapatos das meninas tentam não se enlamear; mães sem os filhos, filhos batendo no vidro para entrar, “todos querem o guarda-chuva esquecido num dia de sol, quando havia sol”; o sorveteiro não tem o que vender; o turco não vende suas maçãs. O texto poderia ser um poema, assim como epígrafe de uma antropologia do comum, do habitual e do assombroso. A ilustração e o texto derrubam chuva por páginas azuladas, refrescando o calor cáustico da tagarelice do mundo.

O ciclista é mais claro, quase solar, não fosse o tom pastel que é exatamente o tom do desgaste dos dias, a cor lavada pela repetição do trajeto, do emprego, da cidade mal gerida. Há também um guarda de trânsito, este crucificado: é sua postura diante do tráfego da cidade. O ciclista consegue abrir o guarda-chuva com uma mão e tomar sorvete com a outra, um trapezista do asfalto. 

A bicicleta expande o seu corpo, pedalar atiça o gênio da lâmpada. Não se trata de magia, o gênio é a velocidade e o drible entre carros. Realizaria desejos, não se sabe para o júbilo de quem. O caminhão solta seu calor de búfalo na nuca do ciclista. A primeira versão do texto havia sido uma reportagem e recebeu, à época, o título de “A morte do ciclista”. Dalton deu conta primeiro da notícia para, depois, dar as tintas da ficção. Nesta, o ciclista volta para casa, não sem antes fugir pelos ares com a bicicleta nos ombros. 

Tanto a chuva de um livro quanto o caminhão do outro são inclementes. Perturbam a rota dos passantes, tal qual a canção “Construção” de Chico Buarque, ainda que o ciclista nem tenha atrapalhado nada com seu “diáfano esqueleto”. Mas, em comum, “flutuou no ar como se fosse pássaro”, na letra do Chico e na misericórdia de Dalton, que salva o ciclista e o entrega dentro de casa, ele e sua bicicleta. No caso da chuva, ela é branda, não chega a derrubar as árvores. Sem fúria embutida, parece uma garoa contínua. 

Em Chuva, a ira engatinha, quase ronrona, pata macia com unhas escondidas, finge que não pode matar como o caminhão, faz outra coisa: “A chuva engorda o barro e dá de comer aos mortos”. Nos dois casos, há um perigo sorrateiro, como na vasta obra de um dos mais importantes autores brasileiros. Vivo. No cume dos seus 99 anos. São dois livros que celebram o autor. Ao público jovem, ou que ainda não chegou em Dalton, a porta se abre com uma edição que não brincou com a infância. As duas edições são acalentadoras tanto quanto Dalton pode ser, piscando um olho para o leitor, como alerta e cumplicidade.

Quem escreveu esse texto

Andréa Del Fuego

É autora de A pediatra (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024.

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