Rebentos,

Com as armas e a ginga de Jorge

Luiz Antonio Simas traz o Santo Guerreiro da Capadócia para os subúrbios cariocas e conta sua saga a partir das fases da Lua

01jul2024 | Edição #83
Ilustração de Camilo Martins (Divulgação)

Armas de fogo o meu corpo não alcançarão, 
facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar, 
cordas e correntes se arrebentem sem o meu corpo amarrar. 
(Oração de São Jorge)

Armas de fogo o meu corpo não alcançarão: essa parte da oração de São Jorge facilmente poderia ser ouvida da boca de uma mãe moradora de alguma favela carioca rogando pelo filho quando sai de casa. Diante da violência policial frequente que assola nossos dias, não é novidade dizer que essa mãe que roga ao Santo Guerreiro é uma mulher preta. Em O cavaleiro da lua, Luiz Antonio Simas reconta essa história de forma a apresentar o inimigo do dragão da maldade quase como numa dança com um menino que poderia ser o filho da mesma mãe que recita a oração.

No infantojuvenil, Simas situa de jeito leve a relação da fé desse menino com o São Jorge da Capadócia. Na história, ilustrada por Camilo Martins, o santo é negro, e o menino também. Nas quebradas do Brasil, a fé é tão necessária que às vezes só ela nos permite chegar no fim do dia e ter esperanças que o próximo seja melhor, chegar vivo, encontrar a família e poder descansar depois do trabalho. São Jorge, que para muitos é Ogum, pra outros Óxossi derruba uma tropa inteira só com o sorriso, e faz isso através da gente.

O livro desafia qualquer indiferença e serve de ferramenta para enfrentar o racismo religioso

O cavaleiro da lua não dessacraliza o santo, mas diz para o menino que ele mesmo pode, através da fé, semear o que o santo é. Não há distanciamento sem ser o espacial: o menino em sua cidade — que poderia ser no sertão do Ceará ou uma aldeia em Roraima — e o santo na Lua. Aqui a igreja não impera, e o sagrado é toda escuta que o menino precisa para compreender a força que São Jorge tem.

Só a sagacidade dos malandros cariocas podem explicar a desenvoltura do autor para recontar uma história tão conhecida, tão popular como a de São Jorge, de forma original. Original por ser um cordel, que se apropria das fases da Lua, onde vive o nosso santo guerreiro, para dividir os versos e aproximá-lo do cotidiano de um menino que mora nos subúrbios do Rio.

Em noite de lua minguante
O menino olhou o céu
E ficou desconsolado
Com vontade de chorar
Ao imaginar são jorge
Tristonho, mal-humorado
Naquele espaço apertado
De um fiapo de luar

A Academia Brasileira de Literatura de Cordel explica que há diferentes modelos para a estrutura dos cordéis, com versos que podem conter de quatro até seis sílabas cada, nesse caso sextilhas, com regras de rima, mas também podem se estender quando a história é mais longa, um martelo agalopado. As fases da Lua ajudam a enquadrar a forma e também dar sentido para cada momento da história.

Sabor de feijoada

Por mais didático que seja, O cavaleiro da lua se abre mais ao lúdico que ao histórico e religioso. São Jorge é tão protagonista quanto a Lua, e isso encanta. Para melhorar a compreensão do leitor, ao final do livro há um beabá das fases da Lua, ilustrado e descrito com didatismo, que convida o leitor a olhar para o céu e tentar adivinhar em qual fase a Lua está: minguante, cheia, crescente ou nova.

O jeito que Simas conta a história é generoso. Como escreve o autor, o livro tem “sabor de uma boa feijoada” e é dedicado “a todos os devotos de São Jorge guerreiro e, em especial, às crianças dos subúrbios cariocas”.

Com as armas de Jorge, o livro desafia qualquer indiferença e serve de ferramenta para enfrentar o racismo religioso. Como diz a oração ao santo:

Dai-me coragem e esperança, fortalecei minha fé e auxiliai-me nesta necessidade. Assim seja com o poder de Deus, de Jesus e da falange do Divino Espírito Santo.

Quem escreveu esse texto

Jefferson Barbosa

Jornalista, membro da Coalizão Negra por Direitos, Global Fellow da Fundação Ford, foi fundador dos coletivos PerifaConnection e Voz da Baixada e autor de A Mãe do mundo: vida e lutas de Mãe Beata de Yemanjá (Malê, 2023).

Matéria publicada na edição impressa #83 em julho de 2024. Com o título “Com as armas e a ginga de Jorge”

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