Quadrinhos,

Por dentro da toca do gato

Através da relação entre uma mulher e seu felino, graphic novel cria novos significados para as coisas simples do cotidiano

01out2019 | Edição #27 out.2019

“Estranho o destino dessa jovem mulher, privada dela mesma, porém, tão sensível ao charme das coisas simples da vida.” Ao começarmos a leitura da graphic novel Viagem em volta de uma ervilha, nos recordamos de Amélie Poulain, personagem do filme de Jean-Pierre Jeunet lançado em 2002. A partir de um olhar intimista, a autora Sofia Nestrovski e a ilustradora Deborah Salles nos mostram que por meio da introspecção do cotidiano é possível criar as histórias mais poéticas e carregadas de significados.

Sofia, a protagonista, tem 25 anos e mora num pequeno apartamento com sua gata de dois anos, a Princesa Ervilha, também conhecida como Pituca, entre outros codinomes engraçados. Sofia gosta de lutar kung fu e nutre uma grande paixão pelos livros, especialmente os de autoria de William Shakespeare e as poesias dos séculos 18 e 19.  Ela passa várias horas do dia em seu apartamento, pois está desenvolvendo um mestrado sobre os poemas tristes, que foram escritos há duzentos anos e que ela tanto aprecia.

Ao longo da narrativa de Viagem em volta de uma ervilha, vemos uma mulher que busca se descobrir através da literatura e do poder das palavras. A obra nos mostra como as histórias imaginadas são mecanismos importantes para conhecermos mais sobre nós mesmos, além de auxiliar na construção dos nossos planos — nos faz lembrar da sonhadora personagem Shizuku, da animação japonesa Sussurros do coração (1995).

Da realidade para a ficção, a história da obra surgiu a partir do convívio entre as amigas Deborah Salles e Sofia Nestrovski. Quando se conheceram, Salles admirava os textos de Nestrovski, e juntas elas decidiram criar um livro, mas não tinham ideia de como começar ou o que seria tal obra.

Nesse mesmo período, Nestrovski estava desenvolvendo seu projeto de mestrado em estudos literários (hoje ela é mestre em teoria literária pela Universidade de São Paulo) e chegou a estudar o poeta inglês William Wordsworth (1770-1850), uma das influências utilizadas no quadrinho. Já Salles havia acabado de se formar em design gráfico e passava muito tempo na casa da amiga, trocando conversas e realizando seus trabalhos. Foi então que surgiu a ideia de criar uma história a partir do cotidiano de Nestrovski e de sua gata, Princesa Ervilha.

Descobertas

A ilustradora conta, em entrevista para a editora Veneta, que a Princesa Ervilha foi uma personagem que surgiu naturalmente na história, já que estava sempre perambulando e — principalmente — aprontando no lar de sua amiga. É muito curioso observar a relação entre a personagem Sofia e Princesa Ervilha no quadrinho.

Resgatada dentro de uma caixa de papelão, a Princesa ganhou o coração de Nestrovski e um lar para chamar de seu. Segundo a autora, Pituca chegou num período em que ela estava escrevendo e lendo muito, assim a proximidade entre as duas foi crescendo com o passar do tempo. Na obra, Ervilha gosta de ficar entre os livros, observando e distraindo sua dona, e Sofia menciona que gatos são seres que nos fazem “olhar para os nossos próprios pensamentos sem termos a obrigação de pensá-los”. Assim, podemos notar que parte do processo de autodescoberta de Sofia ocorre através desta bonita e singela relação com sua gata.

As ilustrações se tornam cada vez mais psicodélicas, como se estivéssemos assistindo a uma animação

A proximidade entre mulheres e felinos já foi abordada em outra obra. No curta animado Ela e o seu gato (1999), do diretor Makoto Shinkai, temos a história do cotidiano de uma mulher que vive sozinha com seu gato, retratando os momentos felizes, tristes e solitários da vida adulta. Enquanto isso, o gato descobre o mundo na tentativa de compreender os sentimentos de sua amiga humana. Em Viagem em volta de uma ervilha, à medida que Sofia reflete a proximidade e o distanciamento com Ervilha, a gata também passa a descobrir os mistérios escondidos por dentro dos livros a que ela tanto adora se aconchegar.

Numa espécie de Alice no País das Maravilhas, mergulhamos na toca do coelho — o apartamento de Sofia —, por meio do fluxo de consciência da personagem, com passagens que nos mostram, por exemplo, o significado de algumas palavras, curiosidades das irmãs Brontë, reflexões sobre Harry Potter e Shakespeare, e Dorothy Wordsworth (1771-1855), autora e poeta do século 18 que teve seu trabalho ofuscado pelo do irmão.

Por conseguinte, é interessante observar as ilustrações de Deborah Salles. Elas se tornam cada vez mais psicodélicas com o avanço da história e parecem ganhar certos movimentos no decorrer das páginas, como se estivéssemos assistindo a uma animação. O rosa, em contraste com o preto, é introduzido inicialmente por meio da descrição dos objetos, contudo, a cor passa a preencher os quadros nas situações imaginárias entre Sofia e Ervilha. Ao final da obra, não parece que estamos apenas lendo uma graphic novel, pois a fluidez dos traços de Deborah nos leva rumo à imaginação e ao lado onírico das histórias.

No documentário Estúdio Ghibli: reino de sonhos e loucura (2013), dirigido por Mami Sunada, Hayao Miyazaki fala sobre o encantamento de redescobrirmos o mundo por meio das animações. É mágico ver a transformação de um cenário monótono de uma cidade através da criação de personagens que podem voar, correr pelas paredes. “É como se você pudesse ir para um lugar muito além”, comenta Miyazaki. Na graphic novel, Nestrovski e Salles conseguem, assim como Miyazaki, entregar uma obra que atravessa as camadas da imaginação e percorre os sonhos e as divagações de uma mulher e sua gatinha. Juntas, as duas companheiras inseparáveis descobrem um mundo que vai além do que vemos.

Viagem em volta de uma ervilha é uma obra para quem é apaixonado por livros, por gatos e pelas coisas belas e simples que estão escondidas em meio à monotonia do cotidiano.  

Quem escreveu esse texto

Isabelle Simões

É editora do site Delirium Nerd.

Matéria publicada na edição impressa #27 out.2019 em setembro de 2019.