Política,

Os desafios de Luciano Huck

Apresentador paulistano traz reflexões para melhorar a sociedade brasileira, mas seu relato vem de uma posição social privilegiada

01dez2021 | Edição #52

No livro De porta em porta, Luciano Huck propõe uma nova maneira de pensar o desenvolvimento social, à medida que vai intercalando experiências pessoais com pensamentos econômicos. Para colocar essas reflexões em prática, ele terá de convencer seus pares, os ricos, a ser solidários sem marketing, e os pobres a confiar nos ricos e seus discursos. O caminho está traçado.

Há uma condição humana que iguala todos nós: somos mortais. Ricos, pobres, negros, brancos, homens, mulheres, lgbtquia+ etc., não importa. Vivemos com a certeza de que um dia encerraremos nossa trajetória. Essa consciência, no entanto, não deve gerar medo, ou nos tornar irresponsáveis. O confronto com a morte nos faz valorizar nosso tempo. A certeza do fim nos motiva a deixar um legado, algo que transcenda nossa existência e nos eternize.

Huck não esconde seus privilégios, nem mesmo quando descreve situações de desespero

Em De porta em porta, Luciano Huck faz um emocionante relato sobre a experiência de se confrontar com a morte. A história começa dentro de um avião bimotor. Huck, sua esposa, Angélica, seus três filhos, o piloto, o copiloto e duas babás voltavam, em 2015, de uma gravação no Pantanal com destino a Campo Grande. Era um dia bonito. O estrondo e o silêncio. Uma pane seca apagou os motores, forçando os pilotos a realizar um pouso forçado numa pastagem. O avião ficou destruído. Huck quebrou algumas costelas. Milagrosamente, ninguém mais se feriu.

Huck classifica a experiência como um confronto com a verdade. Naquele voo estava uma das pessoas mais conhecidas do Brasil, um apresentador de carreira bem-sucedida, que havia duas décadas ocupava naquele momento o horário mais nobre do sábado na maior rede de tv nacional. Sua condição de milionário não ajudaria a proteger sua família. Um erro na manutenção do avião, que tinha os medidores de combustível invertidos, e falhas na fiscalização selaram seu destino. A fé de Angélica, a destreza dos pilotos e o abraço forte da babá Marcileia Eunice Garcia (Léa) em Eva, sua filha, então com dois anos, foram mais importantes do que a fama, o poder e o dinheiro.

Diferenças sociais

A partir dessa experiência, Huck sai em busca de um sentido para sua vida. Ele decide usar sua posição obviamente privilegiada para trazer reflexões para a sociedade — lógico que em uma sociedade tão polarizada como a nossa as reflexões irão para todos os campos. A primeira parte do plano é adquirir conhecimento. Nesse momento, a igualdade fundamental da humanidade diante da morte, que permeia o primeiro capítulo, se desfaz. O que se segue é o relato de um homem rico, capaz de acessar lugares exclusivos. Mas também a narrativa de um homem que deseja ser percebido como altruísta e benevolente para além dos seus programas, que enxerga o sofrimento dos outros e tem empatia. E que deseja usar seu privilégio para melhorar a sociedade. Baita desafio.

Não me parece que Huck usa a morte para dizer que é “gente como a gente”. Ele não esconde seus privilégios, nem mesmo quando descreve outra situação de desespero, o acidente do seu filho mais velho em uma prancha de wakeboard, um tipo de esqui aquático, na paradisíaca praia de Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Benício bateu a cabeça e sofreu traumatismo craniano, mas sobreviveu graças aos contatos do pai, que conseguiu um helicóptero para transportá-lo ao Copa D’Or, um dos melhores hospitais do país. É óbvio que, fosse uma pessoa comum, o socorro, muito provavelmente, não teria chegado a tempo. E mais uma vez me parece que Huck não tenta usar o episódio apenas para comover o leitor — embora esse seja um resultado inevitável. A experiência é mais um motivo de reflexão sobre o poder e como usá-lo em benefício da coletividade. Outro puta desafio.

A diferença entre ricos e pobres fica ainda mais clara no segundo capítulo. Huck descreve um singelo café da manhã num hotel à beira-mar na Sicília, sul da Itália. Enquanto o cozinheiro prepara seus ovos mexidos, ele engata uma conversa com um homem magro e careca, de nariz longilíneo, que também aguardava seus ovos. Mais tarde, soube que falava com Yuval Noah Harari, filósofo israelense, uma das mentes mais admiradas da atualidade. Harari é autor de Sapiens, o best-seller que conta a história da humanidade sob uma perspectiva evolucionista e questiona uma série de dogmas relacionados à essência humana e tal. Acho até que vi esse caboco no Caldeirão do Huck um dia. Os dois haviam sido convidados para um evento promovido por uma empresa de tecnologia, que reuniu a “nata da sociedade” mundial.

O encontro com Harari introduz uma linha de raciocínio sobre o que está errado com a sociedade brasileira e o que pode ser feito para consertá-la. Para Huck, o Brasil está fora das principais agendas de desenvolvimento globais, especificamente a educação, o clima e a saúde. Ele culpa, em grande medida, o atual governo por isso. O Brasil está sem um “projeto arquitetônico” de desenvolvimento.

Huck propõe um projeto para o país, que começa com a educação. Graças ao seu antigo programa, o Caldeirão, ele pôde conhecer o projeto educacional da Coreia do Sul, um case mundial de desenvolvimento rápido apoiado pela universalização do ensino. Também graças ao programa televisivo, teve contato com empreendedores sociais como Losângela Ferreira Soares, a Tia Lolô, que, para ajudar o filho, iniciou um projeto de reforço escolar na porta de casa, na periferia de Porto Alegre, mesmo tendo cursado apenas o primeiro grau. A Associação Comunitária Beneficente Tia Lolô hoje atende 250 crianças por dia, com aulas, acompanhamento psicológico, atividades esportivas e balé. Baita desafio.

Superação no Caldeirão

O livro traz, em cada capítulo, histórias de superação como a de Tia Lolô, todas mostradas ao Brasil inteiro no Caldeirão. Huck usa o programa como uma forma de se conectar com pessoas de todas as classes. O Caldeirão, hoje sob o comando de Marcos Mion, uma vez que Huck assumiu as tardes de domingo no lugar do lendário Fausto Silva, é uma espécie de “O povo na tv com propósito”. Há uma série de críticas sobre a espetacularização da pobreza e a exploração marqueteira da miséria que, supostamente, o programa faz, mas isso não é novo. Onde há exposição extrema haverá críticas severas, sem exceção.

A narrativa segue intercalando esses pensamentos profundos sobre a realidade brasileira com relatos pessoais, sobre as origens da família — os avós de Huck emigraram da Polônia para o Brasil fugindo do antissemitismo —, dramas e relações familiares. Esses relatos oferecem um contexto para o pensamento de Huck. Ele afirma quais são os valores que balizam sua vida, em especial o respeito, a humildade e a empatia. Ao mesmo tempo, a meu ver servem como uma espécie de mea-culpa pelo tempo que passou sem assumir as responsabilidades inerentes à sua posição privilegiada — ou seja, por não ter, desde o início, se preocupado em tentar deixar um legado positivo que transcendesse sua própria existência.

Huck deixa isso claro quando relata o dia em que seu irmão, Fernando, assumiu ser gay. Ele tinha 28 anos e o irmão, 18. Huck foi o primeiro a saber, o que considerou um ato de amor. São patentes o carinho e a admiração que Luciano tem por Fernando, mas também fica claro que, por muito tempo, ele foi insensível às dificuldades do irmão em se adequar a uma sociedade machista e homofóbica. Huck foi um canal de propagação da cultura da virilidade, do macho alfa, ignorante do fato de que aquela postura causava dor a uma pessoa amada. O não saber, no caso, não é desculpa, é um agravante. E mesmo quando confrontado com a verdade dos fatos, Huck demorou a compreender que a orientação sexual do irmão não o afetava em nada. “Você demorou vinte anos para resolver isso, eu não consigo resolver em cinco minutos”, disse ele a Fernando, que estava em prantos. Essa parte é massa. Triste, mas importante, além de estar conectada aos desafios de milhares de famílias.

Penso que a compreensão de que podemos fazer mais pelos outros é, talvez, a grande lição do livro. E o recado é para os privilegiados, como ele. A obra é política. Huck propõe uma frente ampla para se opor aos extremos que, atualmente, dominam o debate. Trata-se de um plano que está em curso desde o acidente aéreo. O apresentador atua em movimentos de renovação política, como o Agora, com minha parceira Ilona Szabó, e o RenovaBR, com Eduardo Mufarej, sujeito que na pandemia ajudou e muito o programa Mães da Favela.

A dificuldade do livro de Luciano Huck, como sempre, é conectar os planos com a realidade

O livro, no final, é um guia para o “projeto arquitetônico” pensado pelo prisma de Huck. Esse pensamento está conectado à ideia de que a atividade econômica e empresarial não deve estar calcada no lucro, mas sim na geração de valor para a sociedade. Pelo menos foi o que eu entendi. Esse é o chamado “capitalismo de stakeholder”, base do movimento esg, sigla em inglês para “environmental, social and corporate governance”, que significa governança ambiental, social e corporativa, nova mania entre os arrojados jovens de colete e camisa social da Faria Lima. É, sem dúvida, uma visão otimista de futuro. A dificuldade, como sempre, é conectar os planos com a realidade. Huck será a pessoa que vai convencer os ricos a pagar mais impostos, e os pobres a confiar nos ricos? Só o tempo irá dizer. O que fica claro no livro é que ele vai tentar, e isso é um puta desafio.

Quem escreveu esse texto

Celso Athayde

Fundou a Central Única de Favelas e escreveu Um país chamado favela (Editora Gente)

Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.