Política,
O guia do big bang
Coletânea reúne artigos sobre a quarta onda feminista, marcada pelos discursos da diferença e pelo conceito de lugar de fala
01abr2019 | Edição #21 abr.2019Podemos pensar que os feminismos do século 21 são como um big bang no panorama social e político. Havia uma vez, um ponto de matéria quente e denso que começou a se expandir e “explodiu” no que hoje conhecemos como universo: estrelas, galáxias, buracos negros, cometas e quasars. A teoria real da astrofísica não é bem essa, mas serve de metáfora para descrever a perplexidade geral diante das inúmeras vozes feministas que emergiram nos últimos anos.
Feminismo negro, indígena, lésbico, trans; mulheres cada vez mais jovens saindo às ruas com o corpo pintado, portando cartazes e palavras de ordem feitas com cartolina e caneta hidrocor; ativismo na universidade, nas redes: para onde quer que se olhe, há mulheres se manifestando. O que poderia nos levar a outra questão: a visibilidade dessa onda feminista politizada, de intervenção incisiva e contundente no espaço público, decorre de um efeito cascata — e talvez passageiro — ou, ao contrário, se dá pela entrada irreversível dos temas feministas no debate público?
Apostando na segunda hipótese, Heloisa Buarque de Hollanda mapeou esse conjunto de mulheres para organizar a coletânea de ensaios Explosão feminista. Fruto de observação, pesquisa e articulação cuidadosas, o livro analisa a quarta onda feminista de um ponto de vista bem definido. Trata-se de uma acadêmica da terceira onda (cujo nome mais conhecido talvez seja Judith Butler), disposta a ouvir o “vozerio” daquelas que, para ela, constituem “uma nova geração política”: a dos feminismos da diferença, em que se aprofunda a noção de que outros marcos de identidade produzem discursos e ativismos distintos.
Em “Falo eu, professora, 79 anos, mulher, branca e cisgênero”, o capítulo que abre a seção dedicada a uma espécie de balanço das feministas de sua geração, Buarque de Hollanda explicita, logo no parágrafo inicial, qual foi o percurso escolhido para a organização do volume: “Tenho certeza de que não foi de repente. Se hoje fomos pegas, aparentemente de surpresa, por uma torrente de discursos, experiências, ativismos interseccionais, radicais, lgbtqis, binários, cis e outros; se apenas hoje se desdobram em cena aberta subjetividades, corpos, vozes, foi certamente porque a escuta dos movimentos sociais e culturais foi fraca. Fraquíssima”.
Lugar de fala
O título do capítulo já embute um elemento conceitual central da quarta onda — o tal lugar de fala —, e a passagem, quase à moda de um lide jornalístico, revela que este é um guia feminista para entender as novas feministas. Um guia que, objeto de uma leitura a um só tempo crítica e militante, se propõe a examinar o fenômeno sem dissociar a discussão política daquela sobre produção cultural.
Reparar nisso é fundamental para se chegar à obra com algo da generosidade que parece ter norteado as escolhas de autoras e temas feitas pela professora. Na primeira parte, “A nova geração política”, Antonia Pellegrino, Maria Bogado e Cristiane Costa adotam uma perspectiva histórica para descrever como esses grupos tomaram as ruas, redes e a política representativa.
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Em “Palavra forte”, a atenção se volta para o campo cultural (artes visuais, poesia, cinema, teatro, música e academia), em artigos assinados individualmente ou em dupla, mas que também arrolam como colaboradoras as artistas consultadas e entrevistadas para a confecção do texto, sublinhando o caráter coletivo da construção desse pensamento — outro traço essencial dos novos feminismos.
É uma acadêmica da terceira onda disposta a ouvir o ‘vozerio’ de uma ‘nova geração política’
Se até aqui estamos na vista panorâmica e na descrição de paisagem, é da metade para o final do volume que entramos no terreno propriamente explosivo, quando são abordados os “feminismos da diferença”. Encabeçado pelo ensaio de Buarque de Hollanda, é o momento dos debates internos, muitas vezes encarniçados, entre os vários feminismos e sobre como equilibrar as diferenças entre as identidades — negra, indígena, asiática, trans, lésbica, radical e protestante — dentro das lutas comuns. As contribuições das teóricas do feminismo negro, como Djamila Ribeiro, entrevistada no livro por Stephanie Ribeiro, introduzem o racismo estrutural brasileiro como uma dimensão fundamental ao debate.
Todo cuidado é sempre pouco nas assim chamadas lutas identitárias, por duas razões que não têm nenhuma relação com a crítica rasa à “chatice do politicamente correto”.
A primeira parece mais ou menos óbvia para mim — jornalista, 55, mulher, branca e cisgênero: quem reivindica identidade no campo político e das ideias é porque teve a sua calada, suprimida ou morta. Quando vozes ignoradas por muito tempo se erguem, outras têm que esperar e eventualmente dialogar — operações de alta complexidade e que enfrentam resistências arraigadas. Nem bem os novos feminismos alçaram sua palavra, a produção de críticas contaminadas pelo mansplaining e pelas falsas simetrias não tardou. O resultado forma polêmicas estéreis, sectárias e até violentas sobre a adequação ou não de se avançar na agenda das ruas enquanto os companheiros mantêm comportamentos machistas na vida privada. (Sim, a vítima tem sempre razão.)
A segunda se refere às disputas mais recentes pelo lugar das identidades e da diversidade no panorama geral da política, que podem ser sintetizadas pelo etapismo que sempre caracterizou boa parte da esquerda. Por etapismo entenda-se o eterno lugar secundário reservado às questões de mulheres, negros e lgbt no rol das reivindicações. A imagem do dirigente homem ouvindo as vozes feministas com condescendência e dizendo “vamos tratar primeiro dos temas mais gerais e depois tratemos dos temas específicos” certamente não é estranha para muitas mulheres, desde a geração de Heloisa até esta da Explosão. Ainda ecoa nas ruas a desconfiança com a qual foram recebidas as manifestações feministas do #EleNão contra o candidato da direita em 2018.
Ainda é cedo para entender o significado amplo desses dois movimentos da história recente — o pós-2013 e a criminalização da discussão de gênero promovida pela vaga conservadora de 2018 —, mas são eles que tornam o guia do big bang feminista ainda mais necessário. E que venham outras explosões, muitas outras.
Matéria publicada na edição impressa #21 abr.2019 em março de 2019.