Política,

Mentiras poderosas

Crítica do The New York Times e jornalistas brasileiros discutem as origens e exemplos do uso de notícias falsas como forma de controle

28nov2018 | Edição #19 dez.18/fev.19

“Personificação megalomaníaca e extravagante do narcisismo, mendacidade, ignorância, preconceito, grosseria e demagogia com impulsos tirânicos”: é assim que a influente crítica literária Michiko Kakutani define o presidente eleito. E acrescenta que ele “dificilmente conseguiria tanto apoio popular entre setores do público se não tivesse adotado uma atitude um tanto quanto blasée em relação à verdade”, fazendo uma campanha eivada de “mentiras e práticas comerciais enganosas”. 

Kakutani se refere ao norte-americano Donald Trump. Mas poderia ser ao turco Recep Tayyip Erdo?an, ao húngaro Viktor Orbán ou ao brasileiro Jair Bolsonaro. Em comum, todos eles, emergentes da onda de populismo e fundamentalismo global, recorrem “mais ao medo e à raiva do que ao debate sensato”. Em A morte da verdade, a autora, que por 34 anos comandou a seção de livros do The New York Times, chegando a ganhar um Prêmio Pulitzer de crítica, é categórica: “A ignorância está na moda”.

Primeiro livro de Kakutani, é mais um dos lançamentos recentes nos Estados Unidos (Como as democracias morrem e Como a democracia chega ao fim, entre outros) que se propõem explicar a recessão democrática que a sociedade ocidental vive. Os escritores George Orwell, T. S. Eliot, Philip Roth e Tom Wolfe, bem como o teórico da mídia Neil Postman, são alguns dos autores que lhe servem de substrato para traçar a ascensão da pós-verdade — esse “mundo invertido, onde as premissas e posições em vigor há décadas de repente foram substituídas por seu contrário”. 

Kakutani traz para o debate sua excursão pelo pós-modernismo para tentar traçar como o relativismo em voga entre a esquerda durante as guerras culturais, na década de 1960 (“que argumentava que não existem verdades universais, apenas verdades pessoais”), terminaria usurpado pela direita populista e pelos criacionistas e negacionistas climáticos. 

O relativismo em voga entre a esquerda na década de 1960 terminaria usurpado pela direita populista 

Como são pouco mais que observações (como aponta o subtítulo do livro: notas sobre a mentira na era Trump), a autora não dá uma costura definitiva a suas teses. Mas não deixa de ser interessante como ela passeia por correntes acadêmicas como a da desconstrução como procedimento crítico, cunhada por Jacques Derrida no final dos anos 1960 (segundo a qual “qualquer coisa poderia significar qualquer coisa”), e pela “década do eu”, como Tom Wolfe definiu a literatura dos anos 1970 (revivida no recente boom de livros de memória e blogs pessoais), para afirmar que a “glorificação da opinião acima do conhecimento, das emoções acima dos fatos” terminaria, em última instância, ajudando a eleger Donald Trump.

A autora aponta também os efeitos concretos que “decisões políticas tomadas por convicções ideológicas, ideias preconcebidas e supressão de evidências” podem ter. A Guerra do Iraque é o melhor exemplo: “um dos eventos mais catastróficos do começo do século, incendiando a geopolítica da região, dando origem ao Estado Islâmico e a uma série de desastres para o povo iraquiano, a região e o mundo, cujas consequências se desenrolam até hoje”.

Trump também não é adepto de uma política racional, baseada em ponderação, informações e análises de especialistas. Tanto que uma de suas primeiras medidas foi anunciar a retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris, suspender o veto de Barack  Obama à exploração de petróleo e gás nas águas costeiras e cortar programas de pesquisas em biomedicina e meio ambiente — ações contra a ciência que podem ter consequências a longo prazo para todos nós.

No Brasil

Exemplos de falsidades usadas como “instrumento de conquista e manutenção do poder” são descritos e analisados em Você foi enganado: mentiras, exageros e contradições dos últimos presidentes do Brasil. A calúnia e a dissimulação são instrumento de campanha por estas bandas também. Políticos, aqui ou lá, distorcem a realidade desde sempre. A televisão e a internet apenas lhes deram “novas plataformas para prevaricar”. 

Os jornalistas Chico Otávio (O Globo) e Cristina Tardáguila (Agência Lupa) recontam histórias de mentiras referendadas pelos mais recentes governos — das tentativas de acobertar a doença fatal que acometeu Tancredo Neves às declarações de Michel Temer de que o impeachment de Dilma Rousseff era impensável.  

A ameaça comunista

Os primeiros capítulos, sobre nosso passado mais sombrio, são os mais exemplares de como embustes podem mudar os rumos de uma nação. Neles, os autores relatam como duas ameaças infundadas de que o comunismo tomaria conta do Brasil produziram dois golpes políticos: “O plano Cohen, que empurrou de 38 para 45 as eleições, dando origem ao Estado Novo. O segundo, em 1964, que levou a 21 anos de ditadura”. 

Os dois livros constatam que “mentiras nunca saíram — nem sairão — de cena”. Mente-se agora, assim como foram baseados em mentiras que os piores regimes do século 20 chegaram ao poder. Porém, como há muito apontou Hannah Arendt, “o súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre fato e ficção e a diferença entre o verdadeiro e o falso”. A leitura de ambos os livros nos ajuda a entender e combater as tentativas de tolher nossa democracia. 

Enquanto Otávio e Tardáguila incentivam o leitor a desenvolver um olhar mais crítico diante das notícias, Kakutani resgata sua experiência cobrindo a limpeza étnica e o genocídio na Bósnia para dar lições aos próprios profissionais da imprensa diante dos fatos que vão noticiar. Entre elas: não colocar como pontos de vista opostos ciência e aberrações; não abrir mão de ser exato e falar a verdade em prol de uma neutralidade deliberada; e nunca criar uma falsa equivalência moral ou factual entre vítima e agressor, “porque ao fazer isso você se torna cúmplice dos crimes e consequências mais abomináveis”.

Quem escreveu esse texto

Carol Pires

Jornalista, é redatora do Greg News, na HBO.

Matéria publicada na edição impressa #19 dez.18/fev.19 em novembro de 2018.