Poesia,

Um ouriço do avesso

Grande nome da poesia moderna israelense ganha sua primeira antologia publicada no Brasil

01abr2019 | Edição #21 abr.2019

Muita gente se pergunta como é possível viver normalmente em Israel. Cuidar da casa, fazer compras, trabalhar, ir ao cinema. Em meio a atentados, guerras, memórias do Holocausto, ameaças, jovens circulando com armas nas costas, vigilância quase total, como se pode preparar um jantar? Apenas algumas horas no país, porém, bastam para demonstrar que essa normalidade não só é possível, mas que Israel é um lugar como qualquer outro, em que nada parece prejudicar a rotina. Mas sobra um estranhamento: a opressiva evidência de uma catástrofe iminente.

Sobre essa lâmina incontornável se equilibra a poesia de Yehuda Amichai, coletada em Terra e paz, antologia de uma obra até agora inédita no Brasil.

Amichai nasceu na Alemanha, em 1924. Chamava-se Ludwig Pfeufer, e emigrou com a família para a Palestina em 1935, fugindo do antissemitismo. Como tantos outros judeus recém-chegados, mudou seu nome para uma alcunha mais israelense e nacionalista: Yehuda, versão hebraica de “Judá”, e Amichai, “meu povo vive”. 

Já adulto, lutaria no exército inglês durante a Segunda Guerra e em várias guerras israelenses, depois da fundação do Estado, em 1948. Sua vivência trágica não é apenas intelectual — é empírica. Para os novos israelenses, como ele, vindos da Europa ainda antes da formação do Estado, o drama das guerras se vinculava a um outro: o do desconhecimento da língua. O hebraico que deveriam falar vinha aos poucos sendo retomado do território bíblico, e a ausência de palavras atualizadas fazia-se sentir. Amichai é um dos responsáveis pela dinamização do hebraico, injetando coloquialidade numa poesia até então sóbria. Em sua extensa obra, de mais de trinta volumes — entre poesia, romances, contos e histórias infantis —, criou novas expressões idiomáticas, que foram traduzidas, em sequência, para mais de trinta línguas. Sua poesia está de tal forma entranhada em Israel e nos israelenses que o ex-primeiro ministro Yitzhak Rabin (1922-95), ao receber o Prêmio Nobel da Paz, em 1994, junto com Yasser Arafat (1929-2004), líder da Autoridade Palestina, levou o poeta à cerimônia e, em seu discurso, citou um de seus poemas pacifistas: “Deus tem pena das crianças pequenas/ Mas não tanto das crianças que vão à escola/ Dos adultos, não tem nenhuma” (tradução livre do inglês). 

Cabrito, menino e soldados

Ao longo da coletânea, o leitor vai oscilando entre uma guerra e um jogo de xadrez; a perda de um filho e a perda de um cabrito; um menino que cai da cama e soldados que vão para o front; um pomar e o Holocausto; flores na sala e a perda da fé. Por recursos de justaposição semântica, em que os versos parecem não se relacionar logicamente uns com os outros — mas como desejar um nexo causal ou temporal, quando se vive em estado de absurdo permanente? — e pela alternância entre o grande, o abstrato, por um lado, e o pequeno e concreto, por outro, vai se construindo uma poesia estranha e, por isso mesmo, gigante na sua capacidade de representar o irrepresentável.

Essa “missão” e desejo, aliás, de que é tão necessário quanto impossível narrar, estão em quase todos os escritores de origem judaica ou israelense, como Primo Levi, Paul Celan (a quem Amichai dedica um poema) e Amós Oz. “Eu também faço imagens quadradas/ do amor redondo que era sem limites”, pequeno exemplo dos últimos versos do poema “Flores na Sala”. 

Mas se a tragédia descomunal é da ordem do silêncio ou do grito — sempre longe do que a palavra é capaz de dizer —, cabe ao comum e ordinário, ou mais ainda, àquilo que não tem consciência de si, falar e ser falado. Somente eles podem se aproximar de alguma alegria possível. “Não igual cipreste […]/ mas igual grama, em milhões de brotos verdes discretos”; “Vocês veem lá o arco da época romana? Não importa: mas ao lado dele, um pouco à esquerda e abaixo dele, senta-se um homem que comprou frutas e verduras para sua casa.”

E se a memória do passado é inevitável e dolorida — “Se sou um ouriço, sou um ouriço contrário,/ os espinhos crescem para dentro e fazem doer” —, é o tempo do agora que pode redimi-la. O momento em que a barriga dói, uma filha nasce e um recado qualquer pode ser mais belo e importante do que uma mensagem dirigida a Deus: “Pedidos plantados nas fendas do Muro Ocidental […]/ Em contraste um bilhete está plantado na velha porta de ferro […]/ “Não pude vir/ Espero que entendas”.

Um de seus poemas pacifistas foi citado por Yitzhak Rabin quando recebeu o Nobel da Paz

Num Estado religioso — em que é difícil discriminar a nacionalidade da fé — o poeta, cujos pais eram judeus ortodoxos, pende entre a raiva de Deus, o panteísmo e o ateísmo. Jerusalém, a cidade mais mística do país e uma das mais sagradas do mundo, na verdade são muitas, com faces visíveis e outras ocultas. Em uma delas, veem-se roupas penduradas num varal (mas é o lençol de uma mulher inimiga); em outra, uma pipa se mostra, mas não a pessoa que a segura, porque está escondida atrás de uma muralha. Há uma Jerusalém que se ama como uma mulher em posições eróticas; outra em que tudo se ocupa da tarefa de lembrar — “a ruína lembra/ o pomar lembra/ o poço lembra de suas águas”; outra em que todos são “reféns do governo e da história” e outra ainda, numa das muitas metáforas estranhamente precisas de Amichai, em que “Todos os olhos dos vivos e dos mortos são quebrados como ovos/ na beira da bacia para fazer uma/ cidade gorda e crescente”.  

O instante atual e a ignorância, os únicos capazes de proporcionar uma alegria plena, são entretanto fugazes e quase impossíveis para quem está condenado à consciência, à lembrança e à esperança — estamos todos “infectados de esperança”. E o que fica durante e após a leitura dos poemas de Yehuda Amichai é a dor. Não uma dor chorosa e nem mesmo melancólica, mas uma dor que impede qualquer aceitação e conformismo, que não aceita respostas e que permanece revolvendo tudo, irônica e insatisfeita. 

O que resta de versos como “O Deus de Jerusalém é um Deus álibi eterno,/ não estava lá ninguém viu nem ouviu/ estava em outro lugar. Ele era o Lugar, era Outro” ou “Entre as saudades do passado e as saudades do futuro/ a alma é moída como se estivesse entre duas mós pesadas” é o pó, aquele que se divide entre o homem que foi e o homem que será, bagunçando a Bíblia, a história e a razão, naquilo que de melhor a poesia pode fazer.  

Quem escreveu esse texto

Noemi Jaffe

Escritora e crítica literária, é autora de Não está mais aqui quem falou (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #21 abr.2019 em março de 2019.